
Um dia nosso pai morre.
E ficamos órfãos.
Ele precisa partir, cumpriu sua missão. Mas nunca estamos preparados para cumprir a nossa…
Se, por um lado, nos alegra ver que a vida segue seu curso natural e recebemos a graça de cumprir nossa missão de filhos, que é enterrar nosso pai, por outro lado nos sentimos abandonados no escuro.
Não temos mais pai.
Quanto mais velhos estamos, mais sofremos com a morte de nosso pai.
Como ficaremos daqui em diante nessa vida tão insegura, tão atribulada?
Qual direção tomaremos nas próximas encruzilhadas, se ele não está mais aqui para nos guiar com firmeza?
Como atravessaremos os pântanos, as pinguelas, as noites insones e as tristezas, se ele não está mais aqui para nos dar tranquilidade e o rumo com segurança?
Através dos anos vimos evoluir nossa relação com nosso pai. De seu colo, passamos a ocupar um lugar a seu lado. Sempre sentindo suas mãos firme a nos amparar. Se era nosso motorista, tornou-se nosso passageiro. De autoridade suprema, um amigo na vida.
Nosso limite, nosso código de honra, nosso parceiro nos jogos, nossa aprovação ao superar os medos, nossa risada garantida para nossas piadas sem graça…
E então nosso amigo, nosso companheiro no whisky, nosso conselheiro financeiro, político, emocional…
Na verdade, ao longo do tempo, viciamos em ter um pai a nosso lado ou a nossa espera. Mas sempre presente. Sempre ali. Firme. Incansável em sua missão de pai. Com um estoque inesgotável de broncas e conselhos. E uma fonte ilimitada de amor e carinho.
Não percebemos que nossa realidade mudou, que nossos problemas são outros, que já deveríamos – nós mesmos – assumir o posto e passar a ser assim para nossos filhos.
Continuamos na facilidade de correr para os braços seguros de nosso pai quando precisamos enfrentar os contratempos que a vida nos traz.
Ali sempre tem um conselho, uma ajuda (pequena, grande ou impagável) financeira, um abraço carinhoso, um sorriso acolhedor…
Até o dia em que nosso pai morre.
E ficamos órfãos…
No começo muitos nem entendem direito o que aconteceu. Habituados a presenciar a morte do pai dos outros, e depois ver a própria vida seguir seu curso, não temos o alcance do abismo emocional que é enterrar o próprio pai.
E, de repente, nos deparamos com uma situação difícil. Primeiro impulso: vou falar com meu pai…
E a ficha cai: Não tenho mais pai. Sou órfão.
E, num de repente qualquer da vida, começa a tocar “Naquela mesa”. Ou outra música que, mesmo não fazendo alusão à figura de pai, era a preferida dele. Não importa se estamos num show, num bar, sozinhos no carro e no meio de uma festa. É incontrolável. Choramos com a alma dolorida da orfandade.
E encontramos um objeto que para ele era especial. E as lágrimas descem.
Ou nos deparamos com uma pessoa a quem ele era afeiçoado. O abraço vem com soluços.
E assim, a cada dia, mais a mais, a falta que sentimos dele só aumenta. Não é o luto que dura menos de um ano. É um vazio que nada preenche e fica em nós para o resto da vida. Uma falta que nada repõe. Queremos nosso pai de volta, queremos ter para quem contar nossas conquistas e chorar nossos fracassos.
E aquela dorzinha sobe, cresce geometricamente, e a vida fica mais difícil, os obstáculos se sucedem, e não conseguimos continuar caminhando suavemente, vendo o caminho à nossa frente… pisamos em falso, tropeçamos, deixamos algo sem pagar, faltamos a um compromisso, e mergulhamos num luto que não terá fim.
Porque tudo mudou drasticamente quando nosso pai morreu.
E ficamos órfãos…
Abençoados os pais. Todos eles. Que todos os pais deixem órfãos seus filhos, mas nunca tenham de enterrar um filho…
Amaldiçoados os filhos que abandonam seus pais quando velhos ou doentes, nesses momentos em que mais precisam dos filhos, quando dependentes, vulneráveis.
Abençoados os filhos que ficam ao lado dos pais, com carinho e paciência e os enterram no meio de dor e já sentindo saudade antecipada.
(Imagem: banco de imagens Google)