Autor: Alice Rosa
O dono do livro – Martha Medeiros

Escutei outro dia um fato engraçado contado pelo escritor moçambicano Mia Couto. Ele disse que certa vez chegou em casa no fim do dia, já havia anoitecido, quando um garoto humilde de 16 anos o esperava sentado no muro. O garoto estava com um dos braços para trás, o que perturbou o escritor, que imaginou que pudesse ser assaltado. Mas logo o menino mostrou o que tinha em mãos: um livro do próprio Mia Couto. “Esse livro é seu?”, perguntou o menino. “Sim”, respondeu o escritor. “Vim devolver.” O garoto explicou que horas antes estava na rua quando viu uma moça com aquele livro nas mãos, cuja capa trazia a foto do autor. O garoto reconheceu Mia Couto pelas fotos que já havia visto em jornais. Então perguntou para a moça: “Esse livro é do Mia Couto?”. Ela respondeu: “É”. E o garoto mais que ligeiro tirou o livro das mãos dela e correu para a casa do escritor para fazer a boa ação de devolver a obra ao verdadeiro dono.
Uma história assim pode acontecer em qualquer país habitado por pessoas que ainda não estejam familiarizadas com livros – aqui no Brasil, inclusive. De quem é o livro? A resposta não é a mesma de quando se pergunta quem escreveu o livro. O autor é quem escreve, mas o livro é de quem lê, e isso de uma forma muito mais abrangente do que o conceito de propriedade privada. O livro é de quem lê mesmo quando foi retirado de uma biblioteca, mesmo que seja emprestado, mesmo que tenha sido encontrado num banco de praça.
O livro é de quem tem acesso às suas páginas e através delas consegue imaginar os personagens, os cenários, a voz e o jeito com que se movimentam. São do leitor as sensações provocadas, a tristeza, a euforia, o medo, o espanto, tudo o que é transmitido pelo autor, mas que reflete em quem lê de uma forma muito pessoal. É do leitor o prazer. É do leitor a identificação. É do leitor o aprendizado. É do leitor o livro.
Dias atrás gravei um depoimento para o rádio em que falo aos leitores exatamente isso: os meus livros são os seus livros. E são, de fato. Não existe livro sem leitor. Não existe. É um objeto fantasma que não serve pra nada.
Aquele garoto de Moçambique não vê assim. Para ele, o livro é de quem traz o nome estampado na capa, como se isso sinalizasse o direito de posse. Não tem ideia de como se dá o processo todo, possivelmente nunca entrou numa livraria, nem sabe o que significa tiragem. Mas, em seu desengano, teve a gentileza de tentar colocar as coisas em seu devido lugar, mesmo que para isso tenha roubado o livro de uma garota sem perceber. Ela era a dona do livro. E deve ter ficado estupefata. Um fã do Mia Couto afanou seu exemplar. Não levou o celular, a carteira, só quis o livro. Um danado de um amante da literatura, deve ter pensado ela. Assim são as histórias escritas também pela vida, interpretadas a seu modo por cada um.
(Imagem: banco de imagens Google)
Dia de Poesia – Walter Duarte – Sombras

A lembrança teve fim, cicatrizada a ferida, sei que zombaste de mim, mas, arrumei minha vida. Sou feliz, não mais te quero, já escapei do teu enredo, há tempos não mais te espero, tu perdeste o teu brinquedo. Com alívio vejo agora que minha alma não mais chora, morreu essa dor tirana. Hoje sei que não me gostavas, e que apenas encarnavas talvez maldição cigana.
(Imagem: foto de Maria Alice)
No escuro. Sempre (Memória)

A vida acontece lá fora.
Não aqui entre essas paredes.
Sou prisioneira de um pesadelo sem fim.
Talvez haja luzes e cantos. Mas não os posso escutar.
Talvez haja calor e aconchego. Mas não os posso sentir.
Talvez haja pessoas brindando à alegria. Mas não posso participar.
Continuarei aqui.
No escuro.
Frio.
Silêncio.
E tristeza.
Totalmente sem futuro.
Presa a um longo passado.
Onde havia luzes, calor e alegria.
Não estou viva.
Apenas continuo aqui…
(Imagem: banco de imagens Google)
Alma Cigana (Memória)

Que correria no dia-a-dia. Mas me mantenho firme no propósito de postar aqui diariamente.
Enquanto conseguir…
Trabalho, família, escritos, quatro casas para administrar…
Por viver essa vida tão corrida e sem rotina, recebi há algum tempo o título de “administradora do caos”. Não me ofendi.
Pensei que, se conseguir, realmente, administrar o caos, já estarei fazendo muito.
Porque não é fácil não morar de verdade em nenhum lugar, não ter parada, ficar indo de um lugar para outro, vivendo à moda nômade.
Sou cigana do século XXI. Cigana do Terceiro Milênio.
Lembro-me dos belos ciganos húngaros, que nos receberam naquela noite mágica, e me pergunto se algum dia voltarei lá, para jantar novamente num sítio nos arredores de Budapeste, vendo a neve caindo suavemente sobre o azul Danúbio.
E, depois de saborear um inigualável goulash original, feito por mãos ciganas, acompanhado de vinho feito em casa naquele sítio no meio do nada, passar o resto da noite dançando as danças típicas com uma família cigana.
Não sou desse tipo de ciganos, aqueles que têm sua pequena propriedade e passam a vida morando no mesmo lugar.
Talvez tenha, na verdade, raízes nômades de outros lugares, das tribos de beduínos que atravessam sem cessar os desertos, a procura de tudo e ao encontro de nada.
O silêncio do deserto me atrai. A solidão também. Mas não o calor.
Ou apenas carrego nos ombros mais do que posso realizar, então fico nesse vai-e-vem cumprindo agendas alheias, tentando dar conta de três ou quatro vidas em uma.
Mas aí teria de somar todas essas vidas aos meus já tantos e tão cansado anos e seria muito velhinha para estar dando conta.
Então continuo só tentando entender porque não consigo parar numa casinha de porta-e-janela e ali plantar meus temperos e minhas flores e ficar sossegadinha em uma cadeira de balanço, sonhando o que já foi e esperando, com tranquilidade, a morte chegar.
(Imagem: Pinterest)
Saudade – Ângela Caboz – in Confissões da miúda gira

Saudade é às três da manhã sentir-me perseguida por uma insónia, que me tortura e me rouba o sono. E num acto de loucura, vestir a primeira roupa que encontrar no roupeiro, sem me preocupar se estou bem ou mal vestida. Fechar a porta à pressa, sem verificar se apaguei as luzes, que fui acendendo por onde passei. Entrar sem saber como no carro. Lembrar-me de que nem coloquei perfume, mas a saudade já não dá tempo de volta a casa. Seguir sem rumo certo pelas ruas desertas da cidade, em que os normais dormem o sono da beleza. Enquanto eu, vou para onde a loucura me leva. De repente olhar para o número 10 de uma rua, de que nem sei o nome e saber como estou em frente da tua casa. Olhar para a porta e perceber que já a abriste, ainda antes de eu ter chegado. Sair do carro e não fechar a porta, tanta é a urgência em te abraçar.
Saudade é isso, esta urgência de não sentir saudade. A urgência de matar esta vontade de te beijar. Esta vontade de gritar ali mesmo à porta da tua casa que te amo loucamente. Não ter receio de acordar os teus vizinhos a meio da madrugada. Voltarmos juntos para fechar a porta do carro, perdendo a conta ao número de beijos que demos pelo caminho. Regressar ao teu colo, sem ter a noção de ter subido os degraus da escada, por estar distraída com as promessas de amor que te ia fazendo ao ouvido.
Saudade é amarmo-nos no teu quarto, que de repente me parece pequeno demais para o tamanho do nosso amor. Mas que importa isso, se o que quero mesmo é ficar ali no espaço apertado do teu abraço. Ficar ali a escutar o teu coração a bater no meu peito e respirar o teu ar que desenha remoinhos de paixão na minha pele.
Saudade é acordar com o cheiro da tua pele na minha roupa, que está espalhada pela casa. Sentir o perfume do nosso amor por todas as divisões e, quem sabe até no jardim lá fora. Vestir-me com o meu melhor sorriso, descer as escadas descalça, seguindo o cheiro do café que estás a preparar para nós dois. Sentar-me à mesa, disfarçando a minha nudez com a flor que coloco no cabelo, a rosa azul, que foste comprar na florista ao final da rua e que me querias oferecer ao pequeno-almoço.