
Mais algumas pinceladas e o quadro estaria pronto. Trocou de pincel. Voltou na cor anterior para reparar uma pequena falha.
Afastou-se, como se de um pouco mais distante conseguisse enxergar melhor. Há dias estava totalmente em transe, tentando terminar a pintura.
Não estava suportando o cheiro da tinta, do solvente, do óleo, tudo se misturava, impregnava seu ser, impedia dormir, comer, até mesmo beber água.
Mas o cérebro acelerava a cada minuto. Precisava terminar. Esse quadro tinha de estar pronto para a exposição. O tempo não dava trégua e o prazo se extinguia minuto a minuto.
Notou que no canto inferior direito havia pontos sem nitidez.
Acendeu mais luzes.
Olhou de perto, olhou de longe.
A pintura estava confusa, sem contornos precisos.
Subiu a tela o máximo que o cavalete permitia, e abaixou o banquinho – mocho – que usava diante do cavalete.
E começou a retocar com toda a atenção.
Seu pensamento pedia que terminasse o serviço, como se empurrasse suas mãos. Seus olhos passaram a ver imperfeições em vários pontos do quadro.
Teve início um desespero infantil de não dar tempo, de não conseguir terminar, de não ficar bom, de ninguém entender nada, de ver o quadro ser rejeitado para a exposição.
Trocou de paleta. Recomeçou o trabalho de tonalizar as tintas para reparar todos os defeitos que agora enxergava.
Os contornos se confundiam, as figuras se mexiam e riam de seu desespero. Quando retocava do lado direito, o lado esquerdo ficava completamente desfigurado.
O quadro estava vivo e não aceitava sua mão nem seu pincel.
Os cheiros dos produtos usados entravam por suas narinas e iam direito para o estômago.
O cérebro acelerava mais e mais, exigindo que acabasse logo com tudo aquilo.
A janela, que trazia a luz do dia para o ateliê, que sempre ficou do lado direito, agora estava atrás da mesa da esquerda. Olhou para a saída, mas só viu parede, a porta havia desaparecido.
Apoiou a mão na mesa lateral para se levantar, mas a mesa não estava mais lá.
As cores do quadro invadiram as paredes e todo o ateliê – paredes, chão e teto – se tingia nos tons da gravura, não sabia se estava de pé sobre o solo ou andando nas paredes.
Tudo girava. Tentou colocar a ponta do pincel em uma parte do quadro, mas com o giro só conseguia acertar uma parede.
Um insuportável zumbido tomou conta de sua cabeça. Não havia mais nada nem ninguém ali, o barulho vinha de dentro do cérebro.
Ouviu uma gargalhada. Tudo silenciou. E escureceu…
(Imagem: banco de imagens Google)