
Esta seria uma tarefa rotineira, simples, rápida, quase asséptica (que conserva o “p” mudo, de acordo com Houaiss), não fosse o risco do mofo ou poeira de papéis antigos. Pouco tempo, muitos assuntos a resolver, mas indispensável encontrar esse documento.
Abre armário superior. Sobe na escada. Pega as pastas que o braço consegue carregar. Desce da escada. Abre cada pasta. Procura o antigo documento. Não encontra. Vai fechando. Verifica todos os documentos de todas as pastas, sobe na escada, repõe as pastas, pega outro lote…
De repente, de dentro de uma velha pasta, amarelecida pelos tantos anos decorridos, um envelope cai no chão.
Verifico a pasta. O documento caçado não está ali (sempre digo que não devemos procurar o que precisamos, mas procurar outra coisa, pois só encontramos o que não estamos procurando…).
Recolho os papéis desta pasta, apanho o envelope no tapete, e o lanço na pasta.
Atrevido, teimoso, ele se vira e seu conteúdo se derrama sobre a mesa.
Um mini envelope de papel de seda branco, feito cuidadosa e carinhosamente por mim. Dentro, algumas pétalas de rosas que o tempo não destruiu. Uma foto há tanto guardada, que congelou um sorriso de adolescente, quase infantil, uma paisagem de cidade pequena – praça, igreja, coreto… e, meio de lado, olhando para mim, sorrindo também, ele, a minha primeira paixão. E uma carta. Uma foto guardando a imagem de quem escreveu a carta e a entregou com uma rosa vermelha em minhas mãos de menina.
Esquecida das pastas, sento-me no chão com o tesouro que estava no velho envelope.
As folhas das rosas secas, sem viço, sem cheiro, mas ainda assim inteiras, pois que o tempo lhes roubou o vigor, o brilho e o perfume.
A foto, toda manchada, mantendo vivo um momento mágico, ocorrido há décadas. Quando a vida era leve, a paixão era recíproca, e o mundo era meu, pois ainda tinha uma vida pela frente.
Respiro ansiosa. Com muito cuidado começo a abrir a folha escrita. O tempo não foi gentil com a folha de caderno. As dobras se transformaram em fendas. Totalmente amarelada. Porém, ainda possível de ser lida.
Uma carta de despedida. Era um ponto final. O primeiro de tantos.
Sinto as lágrimas rolarem quentes em meu rosto. Mais de cinquenta anos depois de receber essa carta, ainda tenho emoção ao ler.
E saudade. Não da pessoa que está na foto. Não de quem escreveu a carta.
Mas a intensa e inafastável nostalgia que habita a frágil alma humana.
A vontade de viver mais um pouco aquele tempo vadio, despreocupado, preenchido de sonhos.
Se hoje já não sonho, talvez seja por ter sonhado muito em outros tempos.
Quando ainda possuía mais amanhãs do que ontens. Ainda acreditava que o mundo era meu e estava aberto para ser conquistado…
Esqueço das pastas, dos documentos, dos problemas que substituíram os sonhos em minha vida.
E choro. Livre. Abraçada a mim mesma – só eu me restei na vida – aliviando toda a dor e pressão que os desamores me trouxeram.
E compreendo então que, sim, sinto saudade.
Não saudade de alguém ou de algum lugar.
Choro de saudade de mim.
Saudade da menina que um dia fui, que desapontei, que abandonei. A menina que não sei quando morreu em mim nem quando ou onde eu a perdi…
(Imagem: banco de imagens Google)