Poesia da casa – Renascer (memória)

Na manhã em que o jardim voltou a se colorir
E as flores, orgulhosas, exibiram suas cores,
Depois daquele longo, frio e cinzento inverno
Tanta solidão, tanta saudade, lágrimas de tristeza
Quando os abraços cessaram e os sorrisos sumiram
Quando as famílias se separaram e a música se calou
As paixões esmaeceram e os amores perderam o viço
O mundo todo se recolheu em angustiado retiro
E as almas, tristes, se amiseraram em desesperança
E além do silêncio, nada mais se ouviu.
Nem gritos de dor nem sussurros de amor
O silêncio, intenso, era concreto e perturbador
Que se confundiu com lágrimas, com amargores
Os jardins, entristecidos, desapareceram
E não havia mais a vibração dos sons nem a das cores
E a esperança desaparecia a cada dia que não nascia
De repente, as raízes da vida e do amor brotaram
E as flores anunciaram a nova estação que chegava
Nessa manhã quando vi tantas cores no jardim
Acreditei que a vida poderia, enfim, recomeçar
Simples assim

Passado (28/dezembro/2010)
Enquanto houver um olhar fixo no ponto por onde chega alguém que tarda, e não vem…

Muitas vezes nos damos conta de que parte do nosso passado teima em ficar escondidinho atrás da cortina da sala da existência, e nos espreita, deixando-se flagrar em sua missão de nos mirar sempre, para incomodar mesmo, para que não a deixemos ir para as brumas do esquecimento, a névoa da confusão em que os fatos pretéritos se misturam em datas, locais, vozes, sabores…
Súbito vêm-nos à mente acontecimentos que há muito julgávamos esquecidos.
Como o cheiro e o sabor das comidas que comíamos aos domingos na casa da avó.
A cor dos papéis que envolveram os ovos de páscoa de nossa infância.
O toque gostoso das tímidas mãos do primeiro namorado.
O peso do material que levávamos à escola diariamente.
E podemos ver as fachadas das casas cuja frente automaticamente percorríamos diariamente e nem sequer as olhávamos. Agora, nítidas, vêm à nossa mente como se as tivéssemos visto ontem.
O cheiro da chuva ao molhar a terra do quintal…
Os sons das músicas que dançávamos – nossa geração dançou muito, novos ritmos, novos modismos, rompendo um sistema secular, e vieram as discotecas, as danceterias, e hoje nossa música, tão moderna, tão “nova” já se perdeu, já ficou para trás.
E tantos amigos que deixamos ao longo do caminho, por mudanças de cidade, por ingresso em faculdades distantes, e aqueles que nos deixaram para sempre…
Então mergulho em tantas lembranças, deixo a saudade inundar minha alma e trago o passado para dentro de minha sala.
Vejo então que muita coisa, na verdade, nunca passou. O passado não é passado. Apenas fatos que colocamos mais fundo nas gavetas da memória, que tantas vezes nos esquecemos de arrumar, mas, em qualquer distração, saltam e vêm nos assombrar, acendendo a luz da saudade…
(Imagem: do acervo pessoal da autora)
Dia de poesia – Emídio Lopes – Partiste

E poucas vezes disse “te amo”.
Acanhamo-nos em expressar
Nossas melhores emoções, e de repente
Não podemos mais fazê-lo.
Árvores da mesma floresta,
Nossos ramos se tocaram
Ao sabor dos sopros existenciais.
Flores produzimos, frutos,
Alguns chochos, amargos,
Outros, doces, esplendorosos,
Quando no tempo propício.
Tu sabes, nós sabemos,
Somos assim mesmo, humanos...
Resta um vazio, uma saudade,
Um riso carinhoso de tuas coisas...
Continuas docemente presente
Em meu paraíso emocional.
Beijo tua face, um beijo de energia,
Em minha face sinto teu beijo... de luz.
(Imagem: banco de imagens Google)
Escrevinhar (memória)
Hoje estou com muita preguiça de escrever! Ofício ingrato este da escrevinhação! E dá trabalho!
Pense bem: temos 23 letras. Alguns sinais. Pontos e vírgulas.
E tenho de me virar só com isso para escrever contos, crônicas, livros, poesias… não é possível inovar.
E mais: só posso usar as palavras que os outros já inventaram e no sentido que se lhes deram. Nem inventar palavras me é permitido. A não ser que eu fosse um Guimarães Rosa, a quem o neologismo foi chamado de arte.
E não adianta comprar dicionários. Eles não fazem de você um poeta nem um escritor. No máximo, ajudam a escrever corretamente.
Nasci humano. Tenho de me contentar com as humanas limitações.
Se me fosse dado escolher, nasceria pássaro. De grandes asas e altos voos.
Pairaria sobre as cidades e os campos, conheceria todos os continentes, voaria sobre mares e cordilheiras. E nunca precisaria escrever nada.
As árvores também não escrevem. Mas eu não gostaria de ser árvore. Nascer, viver e morrer com raízes fincadas no mesmo lugar. Eu só nasceria e morreria, jamais viveria.
Nem bicho, nem peixe, nem flor, nem borboleta. Queria ser pássaro. Um condor. Um falcão.
Meu instinto seria voar. Jamais teria raízes nem âncoras. Só asas e o espaço para voar livre. Como destino, a liberdade.
No entanto, pequena humana que sou, sem asas nem raízes reais, eu as tenho imaginárias. As asas eu mesma as cultivo. As raízes – e âncoras – são impostas pela vida. E por mais que me sinta livre e tente voar, tenho de voltar ao mesmo lugar. E escrever é o caminho dessa vida.
Para não enlouquecer, para voar sobre o mundo, escrevo.
Como destino, a fuga pelas letras.
(maio, 2020)
(Imagem: banco de imagens Google)