Para meu pai

Depois de passado um ano de sua morte, a falta que meu pai faz só faz crescer. E também a saudade.

Repito aqui o texto que escrevi na época, porque nada mudou…

“Para meu pai

Quando eu era só a criança que ainda habita em mim, pequena e assustada, ele era meu herói-todo-poderoso.

Matava as baratas que me aterrorizavam, explicava os barulhos noturnos e afastava os fantasmas. Dirigia o carro para fora dos temporais e o tirava de todos os atoleiros… Montava o cavalo com a maior facilidade, e cavalgava lindamente. Tinha uma pontaria incrível, acertava os discos lançados, e nunca voltou de mãos vazias das caçadas.

Ele remava no rio. Ele me levava mar adentro e ensinava a não ter medo. Nunca contei para ele, mas eu morria de medo da pinguela na fazenda, principalmente quando anoitecia e eu passava sozinha – às vezes carregando algum objeto – sem enxergar nada e temendo cair no rio. Mas nada dizia, porque ele admirava e elogiava a coragem. E poderia não querer mais me levar junto. Quando a água estava alta, aí ele me dava a mão para atravessar e o medo desaparecia.

Então eu cresci. E seus ensinamentos mudaram. Era sobre a seriedade no trato com as pessoas, a honestidade nos negócios, e a justiça em todas os atos.

Era sobre respeito e religião.

Era sobre ter responsabilidade sobre os próprios atos, assumir os erros.

E a vida fluiu, seguiu seu curso.

E seus lindos olhos verdes se iluminavam cada vez que eu regressava à casa, e seu sorriso me acolhia.

Nunca cobrou nada de mim. Entendia minha vida corrida e a necessidade da minha ausência.

Mostrava que se orgulhava de minhas conquistas, sempre companheiro e atencioso.

Sem nunca dar um palpite na minha vida, foi sempre companheiro e conselheiro.

Agora ele se foi. Nesta semana, há quatro dias atrás, eu o vi sendo levado, cercado de filhos e netos, deixando um vazio e uma dor que nunca terão fim.

Não consigo imaginar como será a realidade do dia-a-dia sem ele, sem seu apoio, seu sorriso, suas observações.

E, frágil e me sentindo abandonada, tenho medo dos rios que ainda atravessarei. Então, voltando a ser apenas aquela criança indefesa, eu peço – “pai, por favor, pega na minha mão em todas as pinguelas que eu tiver de atravessar, está escurecendo na minha vida”.”

Um ano sem meu pai

Um ano, meu pai, que o senhor partiu.

O coração avisou. Quis ir logo cedo para me despedir. Quando estava a caminho, recebi o chamado “venha logo”. Só desliguei. Nada perguntei. Não era preciso. Eu já sabia.

Restou-me a despedida do final da tarde da véspera.

E todas as despedidas que tivemos nesses mais de sessenta anos. “Tchau, pai, estou indo”. “Vai, filha. Deus te abençoe. Avise sua mãe quando chegar… “. Ah, pai, que saudade de ouvir novamente sua bênção.

E mais saudade ainda dos encontros. Seus lindos olhos verdes sorriam quando eu chegava. Mesmo no fim, já adoentado, mostrava a alegria ao me ver. “Oi, pai, tudo bem?” “Melhor agora que você está aqui…”

Sem um gemido, uma reclamação, com paciência e mansidão o senhor foi aceitando toda a provação que a vida mandou. Sempre tranquilo, leve, em sua fé inabalável nas palavras de Cristo. E nos amou até o final.

23 de maio. Um ano, pai, de sua partida. 23 de maio, o dia que não acabou. Amanheci sua filha, passei a noite no seu velório. E o deixei, sozinho, naquele túmulo no dia 24. Sentindo uma dor intensa, uma terrível sensação de ingratidão que me persegue.

Nossa família é grande. Enorme para os padrões atuais. E era seu sonho, seu desejo. E sempre havia alguém a seu lado – na sala, na varanda, no escritório, no quintal, no carro, na padaria, na feira… era minha mãe, era um filho, era um neto ou um bisneto. Mas sempre havia um de nós a seu lado. Porque sempre foi o que senhor quis assim – não era homem de preferir ficar sozinho, apartado da família.

Mas naquela manhã, pai, deixamos o senhor sozinho. Isso doeu, ainda dói e doerá em minha alma todos os dias da minha vida.

Como eu gostava de sua companhia! Quando saíamos de carro para mil tarefas, o senhor dirigindo daquela forma mais-que-perfeita. E conversávamos… Nossas caminhadas na areia da praia… nossas noites nas varandas de nossas casas… Todos os whiskies que juntos tomamos. E nosso sagrado chopp…

Quando nós ainda éramos crianças, viajámos muito, todos juntos. O senhor nos distraia com ensinamentos – tínhamos de saber o que estava plantado nas propriedades ao longo da estrada. Fomos aprendendo ver a diferença de forma, tom de verde e tamanho das folhas. E aprendendo. Milho. Feijão. Soja. Batata. Algodão… e sua lavoura de algodão, quando tudo se cobria de branco, lembra-se como era lindo, pai?

Quantas lembranças que me sustentaram nesse ano de sua partida… no primeiro dia não entendi o que significava isso.

Porque só ao acordar na manhã do dia seguinte eu entendi que agora eu era uma órfã. E senti a dor insuportável de não ter pai, do luto pelo pai. Eu me deitara filha e amanhecera órfã.

A perda do pai divide nossa vida em duas fases. Antes, com ele a nosso lado. E depois, a orfandade irremediável.

Como se nossa vida recomeçasse do ponto zero. Dia dos pais – o primeiro dia dos pais sem pai. Sempre tivemos nossas reuniões para comemorar esse dia. Mesmo que não pudessem os seis filhos e suas famílias ir para sua casa, por residirem “esparramados” pelo Estado, alguns se organizavam e ali estavam. Mas havia alegre comemoração.

O primeiro casamento na família sem sua presença. Para abençoar Lucas e Raquel. Uma cerimônia lindíssima na Igreja. E o senhor não estava lá presente. Sei que acompanhou tudo, um dia tão importante na vida de um neto muito amado. E na festa, com sua família, cunhados, sobrinhos e filhos, e tantos amigos queridos, por mais alegria que houvesse, eu só conseguia enxergar sua ausência. Primeira festa sem meu pai.

E veio o primeiro Natal. E a primeira “passagem de ano” como o senhor dizia. E no meu aniversário eu não recebi seu telefonema, em mais de sessenta anos, pela primeira vez, não tive seu abraço – real nem virtual.

Seu primeiro aniversário! Como foi triste enfrentar o dia do aniversário do meu pai sem ele. Em nosso calendário anual nós tínhamos os feriados cívicos, os dias santos e o aniversário do meu pai – um dia sagrado.

O senhor esperava esse dia ansiosamente, pois adorava comemorar seu aniversário. E os seis filhos trouxeram seis noras e genros. E quatorze netos. E, através desses netos, vieram dois maridos-netos e uma esposa-neta, hoje já são duas. E oito bisnetos (agora, um ano depois, já são dez – chegaram Lorenzo e Lucas e no final do ano teremos mais um bebezinho, do Lucas, que já está na forma). E todos se reuniam no dia 15 de janeiro, religiosamente, para a comemoração.

Mais seus irmãos e sobrinhos. Sempre foi uma data marcante na família. Pois é, pai, tivemos nosso primeiro seu aniversário sem o senhor… muito triste.

E assim novas datas vão mostrando o vazio que o senhor deixou. E sentimos pela primeira vez essa dor de sua ausência.

Sei que o senhor apenas partiu antes para preparar nossa mesa na casa do Pai, onde todos estaremos novamente reunidos um dia.

Mas enquanto isso, o sofrimento pela sua partida dói. Pesa. Como se Deus, quando o chamou, tivesse colocado em meus ombros um fardo de mais de 100 kg. Para eu carregar para sempre, levar comigo onde eu for.

Não para levar para um lugar determinado, entregar em um armazém, deixar em uma calçada qualquer. Mas para levar comigo, até o final de minha vida, sentindo o peso e a dor de ser órfã, carregando o fardo pesado de sua falta.

Porque essa falta não é leve. Orfandade dói, sangra e pesa. É intensa, uma saudade imensa que fere.

Carrego, agora, em mim, a dor e o peso de sua ausência.

No dia do abraço

Galeria de artes visuais

Hoje é dia do abraço.

Um ano se passou desde que descobri, surpresa, que havia no calendário da internet esse “dia do abraço”.

E repito: nada há melhor que um abraço de verdade.

Não damos “um abraço”. Damos nossos braços, que fazem os corpos se encontrarem, se unirem, se fundirem, num amalgamar perfeito de ternura e paz.

Os corações, assim tão próximos, batem juntos num mesmo compasso. Uma acolhida incondicional – o verdadeiro sentido do “Vem!”.

Um abraço que envolve e emociona. Dado de corpo e alma. Aconchego e segurança. Não é sempre que temos alguém que nos abrace assim. E muitas vezes sonhamos com um abraço que acreditamos nunca irá acontecer.

Mas de repente esse abraço nos surpreende, somos enlaçados, abraçados, apresados. E então, felizes nós nos entregamos.

E esse abraço pode mudar completamente o rumo de nossa vida, a nossa até então apagada existência.

Porque esse abraço… ah, esse abraço… era tudo o que queríamos nesta vida.

Doce surpresa para os amargos dias da quarentena eterna

Visualização da imagem

Comecei a escrever há pouco tempo. Ou melhor, publicar. Sempre escrevi, mas não é fácil publicar, pelo menos na primeira vez. Depois nos acostumamos e vamos publicando livros, textos, o que vier…

Meu blog foi inaugurado em 2008. O que requer um bocadinho de coragem. Porque blog de literatura nesse mundo consumista e exibicionista, não é muito aceito. Mesmo assim, na primeira plataforma, eram milhares de leitores. O que me servia de incentivo a continuar escrevendo.

Crônicas escolhidas do blog se tornaram meu primeiro livro. Emoção indescritível. Vai-se do pavor ao júbilo, entre os atos de entregar os originais na Editora para análise e ter em mãos o livro impresso.

Depois vieram os outros e tenho orgulho do que escrevo.

Há dois anos, o primeiro prêmio literário, em Milão.

No ano subsequente, novo prêmio.

No início deste ano, menção honrosa em Belo Horizonte.

Primeira vez uma classificação com júri totalmente nacional, na primeira vez que concorri aqui no Brasil.

E tivemos os adiamentos e cancelamentos de edições, de encontros, de festas, em razão da situação de isolamento que nos foi imposta pelo atual contexto.

Para movimentar um pouco nosso desânimo, as ajebianas do Rio de Janeiro (AJEB-RJ – Associação de Jornalistas e Escritoras do Brasil, seção Rio de Janeiro) fizeram um Concurso Virtual Relâmpago, para marcar, ao menos no mundo virtual, o 50º aniversário daquela associação. Eram sete categorias.

Resolvi participar, totalmente sem pretensões, eis que concorreria com escritores “de verdade”. Mas não consegui escolher uma única categoria, e, por ser permitido concorrer em mais de uma, escolhi quatro.

Hoje, colocando um pouco de aconchego nessa solidão compulsória, chega o resultado do concurso. Fui premiada nas quatro categorias em que concorri (conto, crônica, poesia e haicai).

Que sensação boa. Entrar em um certame e conseguir ótimas classificações. Receber não só os cumprimentos, mas também o reconhecimento.

Isso motiva a continuar escrevendo e, mais ainda, esquecer por algumas horas todas as tristezas que nosso país atravessa.

Obrigada, Ajebianas RJ, vocês fizeram meu dia mais feliz!!!!!!!!

Encanto e paixão

Gostei da luz dos olhos dele. Gostei que estava me encantando, gostei de não poder me encantar e mesmo assim estar me encantando… (Tati Bernardi)

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A vida só vale a pena ser vivida se houver paixão. Paixão verdadeira, aquela coisa de pura adrenalina. Ansiedade, taquicardia, náusea… tudo isso faz parte da paixão. Mas, qual a origem da paixão, seja por uma pessoa, uma atividade, um objeto? De onde surge a paixão, qual seu ponto de partida?

O encanto.

O encantamento. Alumbramento. Feitiçaria. Arrebatamento.

Seja qual for o termo usado, a paixão nasce do encanto ou do encantamento.

Não há como se apaixonar sem se encantar.

E o que encanta? A beleza? A riqueza? A facilidade? Não sei. Aí está o grande mistério. Não é por acaso que enfeitiçar é sinônimo de encantar.

Nas lendas há sempre um encantamento, ligado à ideia de feitiçaria – o canto das sereias, o veneno na maçã, o sono da Bela Adormecida, a desgraça do protagonista de A Bela e a Fera…

Mas aqui, na nossa triste e cinza realidade, não é fácil encontrar feiticeiras. Nem fadas nem sereias nem bruxas malvadas…

Mas o encanto sobrevive a toda essa crueza da vida real. E nos encantamos por um olhar. Por um sorriso. Por um modelo de carro. Por uma cor de parede. Por uma paisagem, pela curva de um rio, pela encosta de uma montanha, pela forma de uma flor… ah, são tantos os encantos para quem está aberto à paixão pela vida!

O encanto é a partida da paixão. E a paixão o combustível do amor. Que é o sustento da vontade de viver.

Podemos levar dentro de nós um encantamento sem fim, que dura toda a vida. Podemos apenas nos lembrar de alguém que nos encantou um dia “… Fiquei parado, o coração batendo, ela se riu. Foi o meu primeiro alumbramento.”(Manuel Bandeira), e essa lembrança sempre vívida, como um alimento imperecível que trazemos no bolso, para garantir a refeição quando faltar comida.

E também podemos levar vivo, dentro do coração, por toda uma vida, o encantamento que alguém provocou em nós. Uma espécie de compensação nos infortúnios e nas tristezas. Quando tudo parece desmoronar, sacamos, lá do fundo do bolso da emoção, a lembrança de um olhar, um toque, um beijo, e saciamos nossa fome de felicidade e enganamos a realidade.

E então sonhamos com a vida que não tivemos, com o amor que não desfrutamos, com a felicidade que não chegamos a conhecer.

E, se de repente tudo der certo, os astros se unirem para nos possibilitar essa alegria, a maior vingança que podemos ter em relação a todos os momentos nublados, será ver raiar o sol de viver plenamente essa paixão arrebatadora.

 

O futuro e os sonhos

Conhecer o futuro. Saber o que há por vir. Em geral as pessoas tentam adivinhar, buscam modos de desvendar, através de videntes, leitores de areia, conchas, mãos, borra de café…

Mas a ninguém é dado saber o que o tempo e a vida nos reservam.

Vivemos às escuras, de olhos vendados com relação à nossa própria sorte.

Se pudéssemos saber tudo o nos espera, a vida seria bem sem graça. Nenhuma surpresa. Tudo no respectivo quadradinho. Já estaríamos preparados para as alegrias, as lágrimas, as dores, as perdas. Mas, por outro lado, não nos seria dado sonhar. Porque os sonhos preenchem exatamente o vazio do não saber o que será de nós.

Então sonhamos.

Crianças, sonhamos com brinquedos, brincadeiras, natais e casa de vó.

Adolescentes, sonhamos com boas notas, grandes amores, liberdade.

Jovens, sonhamos com a faculdade e com a vida adulta.

Sempre sonhamos um passo à frente do que vivemos.

E os sonhos, muitas vezes, nos ajudam a manter a sanidade, a vontade de continuar vivendo. Porque, de certa forma, sonhos e esperança, voltados para o futuro, são nosso sustento na caminhada até o encontro final.

 Quem começaria um namoro, sabendo que logo sofrerá por essa paixão?

Quem se casaria, sabendo que o casamento não demoraria a naufragar?

Quem faria um curso universitário com a certeza de não seguir aquela carreira?

E tantas outras situações que nos surpreendem positiva ou negativamente seriam conhecidas antecipadamente. As boas surpresas não existiriam porque deixariam de ser surpresa. E para não conhecermos os fracassos, o quanto deixaríamos de viver… nunca conseguiríamos amadurecer. Porque umas pancadinhas de vez em quando nos ajudam a encarar a realidade.

Nunca sabemos se depois da chuva haverá um arco-íris. Daí a beleza de quanto o avistamos, sonhado mas inesperado.

Você sabe que o fogo queima porque um dia ali encostou a mão. Ou levou um choque ao mexer em fios de eletricidade e aprendeu com isso. Surtou com uma paixão ardente que gerou lágrimas e aprendeu a dosar os sentimentos.

Mas se você soubesse previamente tudo isso, para que passar por essas experiências?

Perderíamos nossa humanidade e nos tornaríamos robôs – previsíveis, programados, frios, sem emoções.

Prefiro viver nessa montanha-russa de imprevistos, risos e choros, angústias e alegrias, chegadas e despedidas, felicidade e saudade, a levar uma fria vida linear, com os acontecimentos se sucedendo dentro de uma programação estabelecida e conhecida.

Os aparentes imprevistos acontecem apenas porque estávamos na direção errada, esperando o que não era nosso, com excesso de expectativas equivocadas.

Já nos basta a certeza da morte, que nos persegue no dia a dia, mas mantendo a surpresa, pois nunca sabemos onde nem quando nem como.

Por desconhecermos o resultado, lutamos continuamente. E é gratificante conseguir depois de muito tentar, sem saber se alcançaremos ou não.

Mesmo quando fracassamos, nos sentimos bem porque tentamos, acreditamos – e sonhamos.

O sofrimento vem para que possamos valorizar as alegrias.

Vencer ou fracassar são as faces de uma mesma moeda. A dor do fracasso incentiva a perseverar até conhecer o júbilo e a vibração do vencer.

Futuro é o que vier. Devemos nos preparar para tudo. E sonhar, sonhar muito, sonhar sempre.

Isso é viver.