“Entendo!” disse a Rainha, que nesse meio tempo estivera examinandoas rosas. “Cortem-lhes as cabeças!” e o cortejo foi adiante, três dos soldados ficando para trás para executar os desventurados jardineiros, que correram para Alice em busca de proteção.
“Vocês não serão decapitados!” disse Alice, e os enfiou num grande vaso de flores que estava ali perto. Os três soldados andaram ao léu por um ou dois minutos, à procura deles, e em seguida saíram tranquilamente atrás dos outros.
“Cortaram-lhes as cabeças?” gritou a Rainha.
“As cabeças rolaram, para o deleite de Vossa Majestade!” os soldados gritaram em respostas.
“Muito bem!” gritou a Rainha. “Sabe jogar croqué?”
(Aventuras de Alice no País das Maravilhas, Lewis Carroll)

Segundo nos ensinam os velhos compêndios escolares, o homem é um mamífero bípede, composto de cabeça, tronco e membros.
De acordo ainda que com aquelas lições, o homem se distingue dos outros animais pela sua racionalidade, vale dizer, o homem é o único animal que pensa (ou pensa que pensa).
“Penso, logo existo”. A famosa máxima cartesiana bem expressa a importância atribuída à racionalidade ou racionalismo do homem, que compreenderia dois componentes básicos: a alma e o corpo.
A alma seria uma “substância pensante em extensão” (“res cogitans”), da qual o corpo seria apenas “extensão no tempo e no espaço” (“res extensa”).
E por dar tanto valor à capacidade de pensar, o homem considera como a parte mais importante da sua anatomia a cabeça, que é onde se concentram os órgãos e sentidos nobres, como o cérebro, a visão,
audição, o olfato e outros. A cabeça seria, pois, a sede da razão, do pensamento, da memória, da imaginação, das sensações.
Haja vista o sem número de locuções formadas a partir do vocábulo “cabeça”: aquele dotado de talento ou inteligência tem “cabeça forte” ou “boa cabeça”; o que sabe manter a serenidade e a calma é “cabeça fria”; o que é desatento e distraído vive com a “cabeça no ar ou na lua”; quem se porta com altivez e nada tem do que se envergonhar pode andar de “cabeça erguida”; ao contrário, aquele que é submisso e subserviente vive de “cabeça baixa”; o triste e acabrunhado está de “cabeça inchada”, enquanto o teimoso e casmurro tem a “cabeça dura”; quem está confuso ou atrapalhado “não sabe onde tem a cabeça” e o que toma um prejuízo ou sofre alguma perda “leva na cabeça”. O chefe ou o comandante de uma instituição ou grupo, de objetivos lícitos ou criminosos, é o seu “cabeça”, (atenção: qualquer semelhança com pessoas ou fatos é mera coincidência). O marido ou varão já foi legalmente considerado como “cabeça do casal”, função essa que não mais se justifica nem sustenta diante da justa paridade reconhecida às mulheres, que alguns têm o mau gosto de chamar de “varoa”. Até mesmo a parte principal de um dispositivo de lei é o seu “caput” ou “cabeça”.
Em razão disso, o homem tem verdadeiro pavor de “perder a cabeça”, seja literalmente, o que redundaria no fim da sua existência terrena, seja no sentido metafórico, de não se controlar e se deixar arrebatar até a prática de atos impensados. Isso talvez explique a vetusta tradição dos colarinhos duros e abotoados, das gravatas atadas ao pescoço, como forma de assegurar que a cabeça não se desprenda e saia voando por aí como um balão. Se bem que — como o próprio Freud explica — às vezes uma gravata é só uma gravata.
Como é livre o pensar, direito esse consagrado pela Declaração Universal dos Direitos do Homem e pelas Constituições democráticas contemporâneas, fico cá a meditar com meus botões sobre a importância de, pelo menos de vez em quando, perder a cabeça. Por mulher, livro, música, pintura, comida, bebida ou mera vadiação.
Melhor ainda seria ter várias cabeças e poder trocá-las, como a um chapéu, conforme as vicissitudes da vida. Antes de sair de casa, iríamos até o armário ou cabide e escolheríamos a cabeça mais adequada para a ocasião ou ao nosso estado de espírito. Como nem sempre é necessário o uso do chapéu, poderíamos simplesmente sair sem cabeça alguma, o que, por ser corriqueiro, não causaria espanto aos circunstantes, nem assustaria as criancinhas, como a mula sem cabeça.
Seria também muito bom tomar emprestada a cabeça da mulher ou do marido, dos filhos, pais, irmãos, amigos, colegas de trabalho e até mesmo de alguns desafetos ou estranhos, e assim poder conhecê-los, pensando com a cabeça deles. Quem sabe ainda, a exemplo de roupas, vídeos e automóveis, alugar de vez em quando uma cabeça diferente.
Ultimamente, tenho praticado perder a cabeça, como o faço agora. E sempre que a retomo, sinto que ela e eu estamos bem melhores do que antes.
Talvez seja esse o próximo grande passo na evolução da espécie, desde aquele primeiro passo dado pelos nossos antepassados anfíbios que se puserem em pé e trocaram o pântano pela luz do sol.