Morte no funk

Num primeiro momento ele se preocupou com a notícia.

Afinal, também era funkeiro e não pretendia parar de compor nem de cantar. 

Sete funkeiros foram assassinados de forma parecida, em poucos meses, e a polícia não conseguia desvendar a autoria dos crimes. 

O primeiro ele nem conhecia, assim como outros três.

Ainda que trilhassem os mesmos caminhos, ele desconhecia a existência de muitos. Para ser sincero, nem apreciava esse gênero musical. Mas descobriu que dava dinheiro, muito dinheiro. E era bonito, novo, corpo esculpido nos treinos de luta, fazia sucesso com as mulheres. 

Sonhava ser piloto de avião desde menino. Dedicava-se aos estudos, sempre com boas notas, bem visto pelos professores. Mas um dia, tudo mudou. O pai – que sempre fora tão amoroso, vivia para a família, de repente começara a chegar embriagado, agredia a mãe, batia nos filhos, perdeu o emprego. 

A vida foi complicando, veio a ordem de despejo, e além da casa, também precisou sair da escola.

Da casa para o cortiço, do cortiço para a favela, que prefere dizer comunidade. Seus sonhos se desfizeram na dura realidade da fome nunca bem satisfeita. Depois da terceira agressão, quando teve os dois braços e alguns dentes quebrados, decidiu mudar de atitude. Subiu até o alto, onde nunca fora antes, conheceu o chefão do pedaço e falou que queria aprender a lutar. E descobriu que era bom de briga. Primeiro capoeira, depois o boxe e nunca mais apanhou. Bateu muito. Inclusive em alguns policiais que ousaram subir o morro sem o batalhão. Entregou drogas, buscou armas, ganhou os primeiros trocados. 

Até descobrir o funk. Não precisava saber música, não precisava saber português, não precisava saber dançar.

Era só falar as palavras de ordem, insuflar o morro contra a ordem, contra o sistema, contra a polícia.

Depois de cantar de graça em alguns bailes funks foi ficando conhecido, as meninas o seguiam, e o dinheiro começou a entrar como água que arrebenta as comportas e corre solta. 

Dois meses fazendo dez shows por semana e comprou casa de alvenaria para a mãe, lá em baixo, com telhado de verdade.

Comprou carro, comprou correntes e anéis e muita roupa de bacana, escolhida a dedo num shopping de mauricinhos. 

Agora, um ano e meio depois, já era quase rico. Saíram da casa – ele e a mãe, pois o irmão desaparecera há meses, provavelmente morrera em alguma quebrada da vida – e agora moravam em um apartamento no Irajá. 

E então começaram os assassinatos. 

Dos sete mortos conhecia três, dos quais era muito amigo de dois – MC Sarado e Mc Capeta. 

Foi um choque quando MC Sarado foi fuzilado ao sair de uma casa noturna no Jacarepaguá com a namorada, atingido por um único tiro, na altura do coração, disparado sabe-se de lá de onde. 

Foi ao velório, e MC Capeta contou que o amigo recebera um enigmático telefonema, onde disseram apenas “antes de começar a cantar a terceira música do show amanhã, diga EU ACHO O FUNK NOJENTO E TAMBÉM TENHO NOJO DE QUEM VAI A SHOWS DE FUNK”. 

Claro que Sarado não falou isso, fez o show e foi com a namorada para a boate, e morreu na saída. Souberam que os outros assassinados receberam o mesmo telefonema, com a mesma mensagem, mas nenhum cumpriu a ordem. 

Uns quinze dias depois desse fato, Capeta ligou e disse que recebera telefonema com a mesma mensagem, estava preocupado.

Contratou quatro seguranças e depois do show ia  direto para casa, uma verdadeira fortaleza no alto do morro, inatingível. Perguntou se queria ir também. Por não ter show nessa noite, foi ao show de MC Capeta e depois pretendia ir para a casa dele também, onde fariam uma festinha com algumas fãs. 

Não chegou lá. Corajosamente Capeta passou da segunda para a terceira música sem falar a mensagem. Não chegou no fim da canção. Um atirador de elite estourou-lhe os miolos com arma do mesmo calibre que matou os outros funkeiros, em pleno palco. Ele estava ali no fundo, viu o amigo cair de repente, e não deu tempo nem de socorrer. Já caiu morto, a bala entrou pela têmpora, colocada a dedo no lugar fatal.  Estava começando a sentir medo. 

Ontem, quando atendeu o celular, foi sua vez de ouvir a mesma mensagem.  Não sabia se cancelava o show, se ignorava a ordem ou se deveria obedecer.  Falou com seu empresário. Que achou melhor obedecer. 

Começou o show, se sentia onipotente quando subia no palco e a galera delirava, olhou para o público. Quase seis mil pessoas. Seria impossível ser atingido. Cantou a segunda música programada e passou direto para a terceira. 

Sorriu vitorioso, transgredira a ordem, nele ninguém ia mandar. 

Virou-se para acenar para o baterista. Sentiu um soco no estômago e algo quente, muito quente o atravessou. Caiu no palco, microfone ainda na mão. Não houve tempo para o socorro.

Morreu enquanto ainda ecoavam os acordes da última frase…

(11.07.2013)