Erraram as publicações com o anúncio de “morre o poeta” Thiago de Mello. Porque um poeta nunca morre. O poeta é tão imortal quanto a poesia. Apenas ele não pode mais ser visto.

(Imagem: banco de imagens Google)
CONFIDÊNCIA A MANUEL NA MANHÃ DO SEU DIA
Hoje, meu filho, eu queria
fazer um poema que fosse
límpido e com companheiro.
Queria fazer um poema
que fosse como um perdão,
que fosse como uma espada,
uma palma e uma esperança.
Um poema que te seguisse
como o pássaro ao veleiro,
e como o servo a seu amo.
Que te valesse na mágoa
docemente, como o amigo
que diz ao outro uma frase
bem simples, cujo sentido
nem importa: pois importa
é que as palavras depressa
se arrumem todas em ponte,
dando caminho à ternura
e à confiança.
Amigo desses,
que um dia bem te valesse,
assim o poema eu faria
se soubesse. Mas não sei.
De lembrança, pois te deixo
em vez do poema sonhado
- quase uma confidência.
Um dia, no teu bornal
de viagem, hás de encontrar
coisas que nele arrumei
à maneira de farnel.
Hás de encontrar tão-somente
uns brinquedos, umas nuvens
e umas palavras. No entanto
o mundo eu só não te dei
porque descobri que o mundo
com todas as suas torres
e todas as suas glórias
- o mundo cabe, meu filho,
o mundo cabe inteirinho
na palma da tua mão.
AS ENSINANÇAS DA DÚVIDA
Tive um chão (mas já faz tempo)
todo feito de certezas
tão duras como lajedos.
Agora (o tempo é que o fez)
tenho um caminho de barro
umedecido de dúvidas.
Mas nele (devagar vou)
me cresce funda a certeza
de que vale a pena o amor.
COMO UM RIO
Ser capaz, como um rio
que leva sozinho
a canoa que se cansa,]
de servir de caminho
para a esperança.
E de lavar do límpido
a mágoa da mancha,
como o rio que leva,
e lava.
Crescer para entregar
na distância calada
um poder de canção,
como o rio decifra
o segredo do chão.
Se tempo é de descer,
reter o dom da força
sem deixar de seguir.
E até mesmo sumir
para, subterrâneo,
aprender a voltar
e cumprir, no seu curso,
o ofício de amar.
Como um rio, aceitar
essas súbitas ondas
feitas de águas impuras
que afloram a escondida
verdade nas funduras.
Como um rio, que nasce
de outros, sabe seguir
junto com outros sendo
e noutros se prolongando
e construir o encontro
com as águas grandes
do oceano sem fim.
Mudar em movimento,
mas sem deixar de ser
o mesmo ser que muda.
Como um rio.
(Imagens: banco de imagens Google)