Cozinheira, com muita honra

La destinée des nations dépend de la manière dont elles se nourrissent. (Brillat-Savarin)

Dentre meus hobbies, tenho um que é na realidade o maior prazer na minha vida: cozinhar.

Isso mesmo, ir para a cozinha e qual uma alquimista atual, transformar matéria.

Do feijão duro e sem gosto tirar o virado de couve, macio, cheiroso…

Do frango malcheiroso, nojento, tirar um cuscuz maravilhoso, inesquecível.

E por aí vai…

Minha família é da religião que se reúne em torno de uma mesa. De preferência de uma boa mesa, bem servida, agradável e animada.

Fico horas na cozinha, com prazer e alegria, testando, inventando, criando.

Sim, tentando criar novos pratos – já dizia Brillat-Savarin*, “La découverte d’un mets nouveau fait plus pour le genre humain que la découverte d’une étoile.”

Concordo.

Vivo pensando em receitas, quando eu como alguma coisa diferente em uma festa ou restaurante da qual gosto muito, enquanto não consigo reproduzir a receita em meu laboratório, quer dizer, em minha cozinha, não tenho sossego.

E aquela comida maravilhosa, inigualável, dos franceses? Que se come e se fica imaginando como foi feita, quais os ingredientes, como foi feito aquele tempero espetacular, no qual não se conseguem identificar os ingredientes?

Para tudo na vida há uma primeira vez. E a primeira vez que “pilotei” um fogão – sozinha – e preparei uma refeição para minha família eu estava com nove anos de idade. Subi em um banquinho para cozinhar, porque o fogão de lenha era muito alto para uma criança. Mas enfrentei. E venci. Nunca se esquece do primeiro arroz e feijão…

E também um dia veio a primeira madeleine… nunca se esquece…

Já me aconteceu de comer um prato e não conseguir fazer igual – então fica sendo “meu prato” naquele restaurante – por exemplo o Coq au Vin do Le Procope – é impossível reproduzir em casa, acho que o galo lá não é da mesma raça do frango aqui.

O camarão com arroz negro do Amadeus – o arroz eu consigo, mas o camarão é só lá mesmo para comer daquela forma.

O fettuccine à moda, lá do Lellis da Campinas. Faço quase igual, mas não igual.

E nem por isso pratico o pecado da gula, pois não sou gulosa. Gosto de fazer, de servir, de provar. Sou de comer pouco. Mas sempre eu como bem quando eu faço a comida.

A transformação da matéria é fascinante. De duro, sem gosto, sem cheiro (ou malcheiroso, como as carnes em geral), se tornar, por minhas mãos, macio, apetitoso, cheiroso, saboroso e bonito.

A boa comida preenche todos os sentidos – é agradável à visão, ao olfato, ao tato e ao paladar. E os elogios que virão agradarão a audição.

Uma simples salada pode ser uma saborosa refeição. Depende de como for apresentada.

Leio compulsivamente sobre culinária – desde receitas até filosofia. Já tirei receita de livro do Eça de Queiroz, cujas descrições minuciosas de banquetes dos quais acredito que ele nunca participou nem presenciou aguçam meus desejos culinários.

Tudo que é publicado sobre arte culinária me interessa.

Desde que o homem dominou o fogo e percebeu que depois de submeter a matéria ao calor era mais apetitosa, a descoberta dos temperos, tudo é muito interessante.

A tradicional Enciclopédia da Cozinha  – que sempre vi minha mãe usar (cozinheira “de mão cheia” ela também), Helena Sangirardi (que inspirou até mesmo Vinicius de Moraes), publicações da Cláudia Cozinha, livros portugueses (O Thesouro da Cozinheira, onde se leva ao lume a panela e não se põe no fogo), livros franceses (o difícil é encontrar os ingredientes por aqui).

E os ingredientes, esse capítulo é um desafio.

Trago de viagens temperos, receitas, ingredientes.

Em Budapeste consegui – no mercadão central – vendidas a granel, à moda antiga, as pápricas picante e doce, sem as quais não se faz um goulash de verdade, e que não são encontradas aqui.

Em Barcelona o açafrão em flor.

Do México trouxe pimentas.

Nas épiceries de Paris sempre há novidades, venho com meus frasquinhos cheirosos, doida para chegar e usar, em novas receitas.

Do sul da Itália as ervas secas que enriquecem massas e risotos.

E os utensílios adequados. As facas devem ser bem amoladas, e amoldadas adequadamente às mãos da cozinheira.

O material das panelas e das colheres – barro para moqueca, louça para alcachofra, cobre para compotas; ágata para cremes, colheres de pau separadas para mexer doces e salgados … tudo tem que ser certinho.

Aprender os truques também é importante.

Sofri anos tentando fazer uma batata sauté de verdade, nunca ficava da forma como eu queria, era certeza que havia um truque, mas qual???

Um dia, em Madrid, há algumas décadas, sem nada para fazer, assistindo um programa – de culinária – na TV, o chef preparou, ao vivo e em cores, uma batata sauté, explicando como fazê-la. Nunca mais errei.

Tenho minhas fases – peixes, frutos do mar, massas, risotos… A cada época invento uma modalidade. Mas há os clássicos, fáceis ou difíceis, simples ou sofisticados, que sempre são pedidos – frango ao catupiry, carpaccio, salada de alface com banana, costelinha de porco à mineira; arroz com lentilhas; bacalhau com queijo ao forno; risoto de alho poró; cuscuz; charutinho vegetariano; moussaka; moqueca baiana ou capixaba; camarão ao thermidor; canelone; pudim de legumes, dentre outros.

Qual o segredo de um prato especialmente apetitoso? O verdadeiro prazer em prepará-lo.

Uma simples omelete, se feita com prazer, no capricho e com cuidado e algumas ervas, deixa de ser um prato de roça daqui e se transforma em uma iguaria de cuisine française.

E, também importante: ter alguém para compartilhar esses pratos…

É uma alquimia verdadeira. Acho que é mais fascinante do que transformar pedra em ouro – porque ouro você encontra no fundo de qualquer riacho, embaixo de muita terra, mas uma comida com C – maiúsculo – poucas pessoas sabem fazer.

Et voilà, bon appétit! 

*(Anthelme Brillat-Savarin, 1755-1826)

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