Mês: agosto 2021
Na tempestade

Não vi como essa tempestade começou. Nunca consigo ver de onde vêm os temporais. Estava distraída, cochilando, talvez dormindo. Só sei que aquela brisa, aquele ventinho gostoso que diminuiu o calor, subitamente transformou-se em violento vendaval. E o céu se abriu, e a chuva caiu com força, muita força.
Portas e janelas precisam ser fechadas, não há a menor condição de se sair de casa. Tudo voa lá fora com a força do vento. Árvores caem.
Não tenho como abrandar o vento. Não tenho como amainar a chuva. Então trato de acalmar minhas emoções, esperar a tempestade acabar e seguir a vida.
Em algum momento a tempestade se cansará de causar tantos estragos e se irá. Para onde? Não sei. Provavelmente para algum lugar onde havia ordem e beleza, para o qual levará o caos e a destruição. É sua sina, é sua missão. Para isso surgem as tempestades.
Ouço o rugido do vento – poderoso, destruidor. Escuto o barulho da chuva – não a chuva mansa que lava o ar, mas a borrasca. Penso na minha vida. Quantas tormentas, vendavais, aguaceiros, raios e trovões já enfrentei…
E, em todas as ocasiões, impotente em minha humana fragilidade, apenas abaixei a cabeça para esperar que tudo passasse, na firme certeza da bonança que viria.
Isso que mantém o fio da vida preso a nós: mesmo nas piores tempestades, a fé na calmaria que há de vir.
Em dias de tempestade não há sol. Em noites de tempestades não há lua. Em vidas atormentadas não há amor nem paixão…
E agora, quando a tempestade começa a enfraquecer, eu me preparo para voltar à vida. Ainda que meu jardim esteja destruído, as pétalas das flores arrancadas formarão um lindo tapete que me apontará para onde deverei seguir.
Dia de poesia – Carlos Drummond de Andrade – O amor antigo
O amor antigo vive de si mesmo,
não de cultivo alheio ou de presença.
Nada exige nem pede. Nada espera,
mas do destino vão nega a sentença.
O amor antigo tem raízes fundas,
feitas de sofrimento e de beleza.
Por aquelas mergulha no infinito,
e por estas suplanta a natureza.
Se em toda parte o tempo desmorona
aquilo que foi grande e deslumbrante,
o antigo amor, porém, nunca fenece
e a cada dia surge mais amante.
Mais ardente, mas pobre de esperança.
Mais triste? Não. Ele venceu a dor,
e resplandece no seu canto obscuro,
tanto mais velho quanto mais amor.
No dia dos pais
Um dia, disse Guimarães Rosa: “Não gosto de passarinho. Não gosto de violão. Não gosto de nada que põe saudades na gente.”
Eu sempre amei passarinho. Fui criadora oficial. Além dos “meus”, sempre os busquei livres na natureza, encantada com seu voo – quanta liberdade! – e plumagem, e canto, e tudo.
Hoje, domingo, meu terceiro Dia dos Pais depois de órfã, acordei com o canto dos passarinhos.
Havia um que eu não conseguia identificar. E me lembrei do meu pai, e me lembrei de Guimarães Rosa, e minha orfandade doeu de forma ainda mais doída.
Passei não só a infância, mas a vida, pedindo a meu pai que me dissesse que pássaro estava cantando – e ele os sabia todos.
Ouvia um pouquinho e identificava.
Assim fui aprendendo, eu também, a identificar os pássaros invisíveis na natureza pelo canto.
Um dia – o dia marcado pelo Pai, o dia certo para ele, mas muito cedo para mim, ele partiu. E me vi, naquela manhã, órfã. E desde então sinto falta de algo no mundo, na vida, um vazio que nada preencherá jamais.
É o lugar do meu pai no meu mundo e na minha vida.
E ele faz essa falta nas grandes e pequenas coisas. Quantas vezes preciso de uma opinião (que ele só externava se buscada, nunca deu “palpite” na vida dos filhos), de uma orientação, de uma mão firme para atravessar um perigo, de um interlocutor para conversar sobre tudo e sobre nada, e, ainda, alguém para me dizer o gosto das comidas, os cuidados com o carro, ou que pássaro está cantando e de onde vem o canto, quando não visualizo a ave que canta…
Não tenho mais meu pai. E tudo isso acabou.
Hoje é Dia dos Pais. Era um dia santificado para mim. Fazia qualquer sacrifício para estar com meu pai nesse dia. Agora estou sozinha. O Dia dos Pais continua, mas não tenho mais meu pai.
E isso é muito triste.
A saudade dele é imensa, indescritível.
E, nesse amanhecer, tão triste, quando ouvi os pássaros cantando, e principalmente quando não identifiquei um deles, entendi plenamente a frase de Guimarães Rosa – esse passarinho pôs mais saudade em meu coração.
Poesia da casa – Na minha partida
Um dia chegará minha vez de partir.
Quando a Ceifeira vier para me buscar,
Pedirei que me dê um minuto a mais.
Um singelo minuto apenas.
E nesse minuto reviverei tanta coisa
Eu me lembrarei das – poucas – alegrias
E das tantas tristezas que um dia conheci.
Levantarei os véus das pesadas mágoas
E perdoarei todos aqueles que as provocaram.
Não quero levar nada comigo.
Deixarei tudo aqui.
Ela me olhará aflita porque estou demorando
E eu direi: – um minuto apenas, um minuto!
E abençoarei todos os que se preocuparam comigo
E um dia me fizeram feliz de alguma forma
E pedirei que o Pai perdoe e abençoe aqueles que
Me feriram sem se importar com meus sentimentos.
E me despirei das vaidades acumuladas neste mundo,
Para seguir sem bagagem, sem peso, sem lembranças.
Quando ela, impaciente, cobrar minha rápida partida
Eu direi: – um minuto, eu só lhe pedi um minuto!
E abraçarei minha mãe e meu pai
E meus irmãos e minhas irmãs
E direi: – não sofram – vocês me fizeram feliz!
Eu apenas parto antes de todos e os esperarei
E prepararei a chegada de cada um no momento
Certo de partirem para o lado de lá.
Impaciente, ela baterá o cabo da foice contra o chão
E dirá: – vamos, você está demorando muito
E eu direi: – você me deu um minuto de prazo, espere!
E então irei me despedir do meu amor,
Para que não sofra com minha falta e seja feliz;
Direi que parto em paz por ter sido amada e que
Seu olhar me ajudará a atravessar o espelho
E me dará coragem para não sentir medo, e ainda que
A lembrança do seu amor me guiará do outro lado.
Então, chegado o momento, olharei de frente
Para essa indesejada e inevitável pessoa e direi:
– Estou pronta, vamos lá!
E, em paz, eu partirei…
Dia de poesia – Ernesto Cardenal – Al perderte yo a ti

Al perderte yo a ti
tú y yo hemos perdido:
yo porque tú eras
lo que yo más amaba
y tú porque yo era
el que te amaba más.
Pero de nosostros dos
tú pierdes más que yo:
porque yo podré amar
a otras como te amaba a ti
pero a ti no te amarán
como te amaba yo