Dia de notícia boa – “O perfume das madressilvas”

Hoje, ao acordar, eu me dei conta do quanto precisava de uma boa notícia. Pensei em publicar um anúncio aos amigos, nas minhas redes sociais “Se você tem uma boa notícia, passe-a para mim. Estou precisada de notícias boas.”. Não o fiz. Não foi necessário. Ao ligar o celular, encontro mensagem de minha querida amiga Ana Maria Tourinho, que me cumprimentava pela premiação no concurso literário Mandala, na Itália.

Fui ao site da Mandala. E conferi: primeiro lugar na categoria prosa, com meu texto O perfume das madressilvas.

Não há notícia melhor… Obrigada, Ana, meu dia se alegrou com a notícia e seus desdobramentos.

Re-publico aqui o texto – já publicado em 18.04.2021, que me trouxe essa alegria:

O perfume das madressilvas

Uma janela não é uma simples abertura na parede. Uma janela pode ser tudo o que quisermos que ela seja – o quadro animado, a fonte de sons, o elo com a vida, o símbolo da esperança…
Foram meses, quase ano, de isolamento social. De dor e tristeza. De muita angústia.
E a janela quase sempre cerrada – não havia utilidade em ser aberta nem diferença em permanecer fechada.
A rua estava sempre deserta, as outras janelas, aferrolhadas. Os jardineiros desapareceram e as rosas não mais floriram. Eu me perguntava: como isso tudo acabará? O que será de nós?
As calçadas, abandonadas, já não eram mais o ponto de reunião e de animadas brincadeiras das crianças do quarteirão. Por isso a janela ficou muito tempo fechada. Era menos triste do que permanecer aberta para o silêncio e o nada.
A vida estava do avesso. E o avesso se tornou o lado certo para se tentar sobreviver.
Até esta manhã. O ruído de rodinhas de bicicletas, e o infalível assovio dos meninos chamando os outros para a rua, logo cedo, deram a ideia de que ainda estamos vivos.
Tímidas, as crianças começaram a chegar, trazendo bolas, boliches, piões e outros brinquedos.
Logo a gritaria se instalou, naquele caos que só as crianças sabem organizar e nele se entendem.
Havia sol na manhã. Abri a janela. Era outra paisagem ou eu já me esquecera como eram as manhãs ensolaradas do lado de fora dessa janela?
Encantada, deixei-me ficar ali por horas, assistindo jogos e disputas. Admirada da resiliência desses humaninhos que não se deixaram aniquilar pela desesperança que dominou os adultos durante a peste. E que voltavam à vida com todo o ardor de quem sempre acreditou.
As mães chamaram para o almoço. E eles se foram. Provavelmente ficaram em casa para os estudos online.
Mas minha janela permaneceu aberta.
Para celebrar a vida. Ainda estamos vivos. Somos sobreviventes desse ano de horror e medo.
Perdemos pessoas queridas. Choramos mortes. Mas nós sobrevivemos.
E de todo esse caos que tivemos de enfrentar, vejo que renasceremos um dia, e esse dia está próximo.
Nunca mais haverá o mundo livre que já conhecemos e vivemos. Os sorrisos – depois que for abolido o uso compulsório dessas horríveis máscaras – não serão os mesmos. Porque as almas entristeceram. A espontaneidade dos abraços dos antigos encontros será substituída por frios acenos distantes. O medo também foi compulsório. E abraçar alguém se tornou perigoso.
A maior morte que enfrentamos nessa experiência foi dos sentimentos. Famílias separadas. Abraços, aconchegos, beijos, proibidos. Encontros desmarcados. E tudo, durante esse ano, se resumiu ao medo e ausência. Tristeza e saudade.
E quem não teve medo foi obrigado, do mesmo jeito, a se isolar. E foi apontado como negacionista, idiota, fronteiriço. Porque a ordem era dominar pelo medo. E sempre que alguém não se curva às imposições, torna-se malvisto. Subversivo. Ignorante do perigo.
Porque é preciso pensar com a manada. E andar no meio da manada. Ou será alvo fácil.
Foi muito triste ver que as pessoas simplesmente aderiram a uma ideia de perigo sem ao menos pensar, avaliar a situação, ter a opção de correr riscos. Apenas se deixaram dominar por uma ideia vendida pela mídia.
E assim um ano foi perdido. Vidas foram destruídas.
Mas aqueles que resistiram, aqueles que serão os primeiros a reagirem na hora determinada, estes terão forças para o recomeço e, quem sabe, até mesmo se tornarem motivação para que outros saiam das ostras e voltem à vida.
Porque haverá vida depois da peste. Disso tenho certeza.
Ainda cantaremos juntos nossas canções e celebraremos a vida que continua com brindes e alegria.
Empresas reabrirão, empregos serão restaurados. E, todos juntos, conseguiremos colocar novamente nossa vida, nossa família, nossa cidade e nossa Pátria de pé.
Todos os dias desses tempos de peste, eu tenho me preparado para o fim dela. Não pensava em me esconder, não receava adoecer nem mesmo morrer. Mas tinha a mente fixa no momento do renascimento, do recomeço.
Quero de volta minha vida nômade. Quero minha praia na manhã ensolarada. Quero minha mesa no bar ao anoitecer.
Cruzar estradas, mares e céu em busca de outros mundos, voltar à vida que sempre tive, sem rotina, sem parada, sem medo de morrer.
Escrever, publicar, discutir – com pessoas e não com letras ou imagens de computador – e ver brotar a vontade de viver e de seguir adiante, construindo um futuro não só para mim, mas para todos os que vêm e virão depois de mim.
Vou deixar meu legado de luta e disposição para ajudar nas mudanças que a humanidade precisa para não sucumbir ao voraz apetite do consumismo nem à falta de liberdade das dominações.
Ainda brindarei com muitos outros resistentes nossa vitória sobre o medo e – mais importante – sobre a dominação pelo medo.
Porque os homens se levantarão e voltarão à vida com a vontade de crescer e de vencer que demonstravam antes que fossem engolidos pela onda de medo que dominou o mundo.
E tenho planos, muitos planos, para recomeçar do ponto onde parei para me recolher nesse isolamento não desejado. Eu sobrevivi. E honrarei o destino que me deixou viver quando tantos sucumbiram, física ou emocionalmente, diante de um vírus.
Assim foi meu dia de renascer, quando tive a certeza de que estamos de volta.
Agora, quando chega a noite com a doçura da lua crescente – símbolo maior da esperança de que virão as noites de lua cheia – é o momento de fechar minha janela. Apenas por uma noite, porque será aberta todas as manhãs. Será aberta pelo simples motivo que estou viva.
Mas hesito a fechá-la: o calor do dia e a brisa do anoitecer ativaram todo o perfume das flores, e fico mais uns minutos com minha janela aberta, para voltar a sentir a delicadeza do doce perfume das madressilvas em flor
.

(Imagem: banco de imagens Stock)

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