Dia de poesia – Ângela Caboz

Vem cá
Transpõe a barreira dos sonhos
Atravessa a ponte do silêncio
Há palavras, só minhas
que te esperam do lado de cá
para que nos teus olhos
despertem emoções
que andam sozinhas
neste corpo que me pertence.
Vem, traz contigo
A ousadia de me amares
A certeza de me encontrares
Poema-me
Faz-me a poesia do amor
com o abraço que tens guardado
Canta-me
Diz-me ao ouvido,
no silêncio dessa paixão
que o teu beijo
calará com a emoção
A ponte ficou lá para trás
escondida nas léguas de distância
que tu tens para apagar.

Da série “Foi poeta, sonhou e amou na vida” – 19 – Cora Coralina

Ana Lins dos Guimarães Peixoto conhecida como Cora Coralina, nasceu na cidade de Goiás, no Estado de Goiás, no dia 20 de agosto de 1889. Filha de Francisco de Paula Lins dos Guimarães Peixoto, desembargador, nomeado por Dom Pedro II, e de Jacinta Luísa do Couto Brandão cursou apenas até a terceira série do curso primário.

Cora Coralina começou a escrever poemas e contos quando tinha 14 anos, chegando a publicá-los em 1908, no jornal de poemas “A Rosa”, criado com algumas amigas. Em 1910, seu conto “Tragédia na Roça” foi publicado no “Anuário Histórico e Geográfico do Estado de Goiás”, usando o pseudônimo de Cora Coralina.

Em 1911, Cora Coralina fugiu com o advogado divorciado Cantídio Tolentino Bretas, indo morar em Jaboticabal, no interior de São Paulo. Em 1922 foi convidada para participar da Semana de Arte Moderna, mas foi impedida pelo marido.

Em 1934, depois da morte do marido, Cora Coralina tornou-se doceira para sustentar os quatro filhos. Viveu por muito tempo de sua produção de doces. Embora continuasse escrevendo, produzindo poemas ligados à sua história e aos ambientes em que fora criada, se dizia mais doceira do que escritora. Considerava os doces cristalizados de caju, abóbora, figo e laranja, que encantavam os vizinhos e amigos, obras melhores do que os poemas escritos em folhas de caderno.

Já em São Paulo, em 1934, trabalhou como vendedora de livros. Em 1936, muda-se para Andradina, onde começa a escrever para o jornal da cidade. Em 1951 candidatou-se a vereadora. Passados cinco anos, resolveu voltar para sua cidade natal. Em 1959, com 70 anos, decidiu aprender datilografia para preparar suas poesias e entregá-las aos editores.

Em 1965, com 75 anos, Cora Coralina conseguiu realizar o seu sonho de publicar o primeiro livro “O Poema dos Becos de Goiás e Estórias Mais”.

Em 1970, tomou posse da cadeira n.º 5 da Academia Feminina de Letras e Artes de Goiás. Em 1976, lançou seu segundo livro “Meu Livro de Cordel”. O interesse do grande público só foi despertado graças aos elogios do poeta Carlos Drummond de Andrade, em 1980.

Nos últimos anos de sua vida, sua obra foi reconhecida sendo convidada para participar de conferências e programas de televisão. Cora Coralina foi agraciada com o título de Doutor Honoris Causa da UFG.

Cora Coralina recebeu o “Prêmio Juca Pato” da União Brasileira dos Escritores, como intelectual do ano de 1983, com o livro “Vintém de Cobre: Meias Confissões de Aninha”.

Em 1984 é nomeada para a Academia Goiânia de Letras, ocupando a cadeira n.º 38.

A poetisa que escreveu sobre o seu tempo e sobre o futuro, destacando a realidade das mulheres dos anos de 1900 é o principal nome da cidade de Goiás. Em 2002, a cidade de Goiás com sua paisagem urbana predominantemente marcada pela arquitetura dos séculos 18 e 19, recebeu o título de Patrimônio Histórico e Cultural da Humanidade, dado pela Unesco. A casa onde morou a poetisa Cora Coralina é hoje o museu da escritora.

Cora Coralina faleceu em Goiânia, Goiás, no dia 10 de abril de 1985. (Fonte: eBiografia)

Todas as vidas

Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé
do borralho,
olhando para o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço…
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo…
Vive dentro de mim
a lavadeira
do Rio Vermelho.
Seu cheiro gostoso
d’água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde
de São-caetano.
Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.
Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada,
sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha,
e filharada.
Vive dentro de mim
a mulher roceira.
-Enxerto de terra,
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos,
Seus vinte netos.
Vive dentro de mim
a mulher da vida.
Minha irmãzinha…
tão desprezada,
tão murmurada…
Fingindo ser alegre
seu triste fado.
Todas as vidas
dentro de mim:
Na minha vida –
a vida mera
das obscuras!

Becos de Goiás

Becos da minha terra...
Amo tua paisagem triste, ausente e suja.
Teu ar sombrio. Tua velha umidade andrajosa.
Teu lodo negro, esverdeado, escorregadio.
E a réstia de sol que ao meio-dia desce fugidia,
e semeias polmes dourados no teu lixo pobre,
calçando de ouro a sandália velha, jogada no monturo.

Amo a prantina silenciosa do teu fio de água,
Descendo de quintais escusos sem pressa,
e se sumindo depressa na brecha de um velho cano.
Amo a avenca delicada que renasce
Na frincha de teus muros empenados,
e a plantinha desvalida de caule mole
que se defende, viceja e floresce
no agasalho de tua sombra úmida e calada..."
Meu Destino

Nas palmas de tuas mãos
leio as linhas da minha vida.

Linhas cruzadas, sinuosas,
interferindo no teu destino.

Não te procurei, não me procurastes – 
íamos sozinhos por estradas diferentes.

Indiferentes, cruzamos
Passavas com o fardo da vida...

Corri ao teu encontro.
Sorri. Falamos.

Esse dia foi marcado 
com a pedra branca da cabeça de um peixe.

E, desde então, caminhamos
juntos pela vida...

As mulheres vão embora – Martha Medeiros

“Toda mulher tem um homem que se foi”. Assim começa um poema que escrevi cerca de 20 anos atrás, reforçando a ideia de que eles saem para comprar cigarro e esquecem de voltar.

A sociedade sempre aceitou como natural a figura do homem que um dia se enrabicha por outra e abandona a família, ou, dizendo de forma menos cafajeste, a do homem que deixa de amar a esposa e reconstrói sua vida.

Pertencia só a eles a liberdade de ir e vir.

Tinham dinheiro no bolso e eram donos de seus narizes: às mulheres restavam as lágrimas e uma pensão para os filhos, tivessem um bom advogado.

Hoje, as mulheres também vão embora.

Não precisam alegar que irão comprar cigarro na esquina, a sinceridade é mais saudável: elas se vão porque a relação se desgastou, se vão para escapar de um parceiro agressivo, se vão porque se apaixonaram por outro, se vão porque evoluíram profissionalmente e novas oportunidades surgiram.

Se vão porque assim decidiram.

Diante da secular hegemonia masculina, nossa independência ainda é uma novidade, nem todos se acostumaram.

Mas homens esclarecidos e sagazes nos respeitam.

Sofrem, como nós sofremos com a partida deles.

Choram. A dor da perda é a mesma.

Vez que outra, os mais inconsoláveis rogam praga: “você vai ficar sozinha para o resto da vida!”.

Cuidado. Em vez de inibi-la, a ameaça poderá entusiasmá-la: o que não falta é mulher sonhando em sair de uma relação para viver só para seus livros, filmes e amigos, livre como o vento soprando nas montanhas.

Pena que não há poesia na ignorância.

Uma mulher que se vai, para muitos, é uma afronta.

Homens mal preparados para a igualdade não sabem lidar com a rejeição.

Em vez de buscarem uma terapia para ajudar, eles buscam a arma que escondem em cima do armário, buscam uma faca na gaveta da cozinha e aumentam os índices de feminicídio. É só ler os jornais, acompanhar as estatísticas. É sempre a mesma razão banal: matou porque ela teve a audácia de largá-lo.

Extra, extra! As mulheres vão embora.

Ganham o próprio salário e vão embora.

Leem, se informam, se unem, se reconhecem em outras mulheres, e se for necessário, vão embora.

São mães e vão embora sem fugir de suas responsabilidades: estão protegendo os filhos de um ambiente hostil.

Amaram seus homens, foram felizes com eles, e quando deixaram de ser, foram embora.

Nada de novo, é o que os homens sempre fizeram.

Novidade seria se eles fossem assassinados por causa disso.

Eduquemos bem nossos meninos de 8, de 10, de 15 anos: mulheres não são propriedade alheia, elas vão embora.

Cientes dessa realidade, quando adultos eles se tornarão os melhores companheiros, os mais inteligentes, os mais amorosos, aqueles que darão a suas parceiras todos os motivos para ficar.

Solidão

A harpa e seu lamento retido em nervos de metal dourado,

Tão suave instrumento ressonante ou delgado,

Buscam, ó solidão, teu reino gélido. (Garcia Lorca)

Como definir a solidão, se não é igual para todos? É o que de mais relativo existe neste universo.

Para os poetas é inspiração, para os amantes – se juntos é o ideal, se separados é desespero, para crianças é medo, para tantos adultos é tranquilidade ou angústia…

A cada fase da vida a solidão se transforma, adota outros significados.

Um bebê deixado sozinho fatalmente morrerá. A cada vez que não visualiza o rosto da mãe o bebê chora porque não tem noção de tempo nem distância e encara a solidão momentânea  como total e definitivo abandono.

Nos primeiros anos da vida a solidão se transforma em medo – medo do escuro, medo do desconhecido, medo da noite…

Conforme vai crescendo vai aprendendo a dominar seus medos – especialmente os medos abstratos – para mostrar maturidade. Ninguém é ridicularizado se mostra medo de uma serpente, mas se disser que tem medo da noite vira motivo de infinitas gozações…

E na idade adulta esses medos têm que ser controlados. Aí a grande arte de viver.

O medo da própria vida geralmente se transmuda em timidez. Cada medo vai encontrando uma forma de se encaixar na realidade. E saber lidar com essa gama de emoções se torna essencial para a convivência.

E o medo da solidão mais cedo ou mais tarde aparece para todos. Vencê-lo é o desafio. Ou conviver com ele e fazer da solidão uma aliada da jornada terrena.

Quem é mais solitário, o filho que fecha a porta do quarto e ali permanece horas ou dias inteiros ou a mãe, que não tem essa escolha e continua nas lides domésticas, fazendo o trabalho invisível, que é feito exatamente para ser desfeito em seguida?

O defunto que é enterrado sozinho em sua caixa de madeira enfeitada ou a viúva, que terá que continuar viva, caminhando sozinha na vida depois de tantos anos de companheirismo?

A irmã que chora ao se despedir da irmã que vai embora para sempre do país ou essa que vai enfrentar o desconhecido em outras terras?

Todos são igualmente solitários.

E a pior de todas as solidões, sem dúvida, é a solidão cotidiana, dentro do grupo em que se convive.

Solidão em família, solidão entre amigos, solidão no ambiente de trabalho.

Todos passam, em algum momento da vida, por solidão. Doída, aguda, insuportável, porém inevitável.

E surpreendentemente, muitos conseguem lidar de forma extraordinária com a solidão, fazendo dela uma grande aliada, a melhor companheira.

E são felizes sozinhos, a companhia de outro ser humano, eventual, passageira, chega até a incomodar, porque se sentem melhor sozinhos…

Se a solidão é opção se transforma mesmo em felicidade.

E equilibrar tudo isso é a maneira de se viver em paz: não se desesperar com tempos de solidão e dar valor às pessoas com as quais se convive – momentânea ou permanentemente.

(Foto de Maria Alice)