
Ligou o carro e saiu. Para não ir a lugar nenhum. Para não voltar a nenhum lugar. Só queria recuperar o prazer de dirigir. Sem pressa, sem bagagem, sem rumo.
Deixara tudo arranjado: contas pagas, armários, gavetas e geladeira limpos e arrumados. Despensa abastecida. A mesa posta. O jantar pronto.
Sabia que ninguém daria por sua falta. Já há algum tempo deixava tudo arrumado e ia para o quarto. No dia seguinte encontrava tudo do mesmo jeito – ninguém tinha o cuidado sequer de tirar o prato da mesa e deixar na pia. A mesa sempre suja e bagunçada, tudo por tirar.
Não davam pela sua falta, desde que o jantar e a mesa estivessem do agrado. Sua presença não era reclamada nem sentida sua ausência. Foi fazendo um balanço de sua vida nas últimas décadas.
De como a vida foi empurrando e então se deixando empurrar. Por problemas familiares deixou o emprego. Mudou de cidade. Praticamente mudou de corpo. Era outra pessoa ocupando o corpo que um dia lhe pertencera. E, de certa forma, até mesmo sua mente.
Não sabe dizer direito o que aconteceu que, de repente, enxergou isso tão claro. E quis recuperar os anos perdidos. Mas não teve jeito. Não havia como romper com tudo isso. Então foi se encolhendo. E sua presença não fazia falta, sua participação não era apreciada.
Por isso tomou a decisão. E tomou, também, todas as providências. Saiu no final da tarde. Sua falta somente seria sentida na noite seguinte, quando não haveria casa arrumada, nem jantar nem mesa nem nada. Era uma boa dianteira. Pensou tudo muito bem antes de executar. Para nada dar errado.
Passou pela ponte, bem devagar, para ver o local onde seus conhecidos se acidentaram há uns dias. Ninguém consertara a amurada. Apenas umas placas de compensado de lâminas de madeiras e luzes vermelhas de alerta mostravam a vulnerabilidade do local.
Tocou em frente. Sentiu saudade do tempo que era realmente sozinha – pelo menos era feliz e infeliz sozinha. Na maior parte do tempo era feliz. Muitos a consideravam louca, pois era livre num tempo em que as mulheres eram domesticadas.
Mas também caiu na armadilha. E se transformara na figura que a sociedade esperava, totalmente enquadrada. E totalmente infeliz.
Queria voltar à vida de porraloka da juventude. Mas era muito tarde.
Fez o retorno. Voltou para a ponte. Passou pelas luzes vermelhas. Acelerou tudo o que podia, e, rindo sozinha, depois de muitas décadas, fez novamente a manobra brusca chamada cavalo-de-pau. Ainda era mestra nisso. Fez mais uma vez e girou o volante na direção do madeirite.
O carro, possante e pesado, rompeu a barreira e mergulhou no vazio. Em paz, sentiu o baque na água e o suave balanço antes do mergulho final. O rio a recebeu. Abriu suas águas como braços para a acolhida. E recebeu o corpo e a alma que o mundo rejeitava.