Memória do blog – Hoje é dia de homenagear os imigrantes italianos

Um dia, eles concluíram que a única saída seria imigrar. Então eles vieram. Deixaram sua linda Pátria e vieram “fazer a América”. Trouxeram sua intensa religiosidade, seu forte senso de família, seus rígidos valores morais e sua dedicação ao trabalho, seja pesado, no cultivo da terra, seja sua habilidade artesanal. Trouxeram ainda toda sua alegria, instrumentos, músicas, rica culinária, vinho, grappa, os hábitos do café e do cigarro… plantaram na alma de cada um de nós, seus descendentes, uma paixão sem fim pela Itália. Hoje, no dia em que comemoramos sua coragem, publico um conto de minha autoria, que nos leva ao tempo dessa corrente humana rumo ao Brasil.

O SOM DO ADEUS

Há muitos anos não chovia tanto no outono. E o único jeito de chegar ao porto de Genova, era caminhando. Na chuva ou no sol. Era preciso caminhar. Quando a chuva apertava, a lama dificultava até tirar os pés do chão, eles se abrigavam em qualquer tapera ou loca, especialmente para que as trouxas não se encharcassem. E era tudo o que tinham. Porque venderam os outros bens – galinhas, xícaras, bules e enxadas. Tudo. O pouco que ficou era posto em trouxas de grosso tecido. E então seguiam até o porto. A pé. Genova era longe. Dias de distância. Noites dormidas nas beiras de caminhos, onde faziam uma roda em torno de si mesmos, crianças, moças e idosos no meio.                       

Antonella seguia firme, o coração apertado. Os pais ficaram na casinha de pedra esperando a morte. Os irmãos partiram antes, primeiro Giovanni, o mais velho. Que logo chamou os outros três mais novos, até Carlo, que sempre foi seu companheiro de vida. E com eles seguiu Luigi. Seu prometido. Ou seria ela a prometida?

E assim, andando dia após dia, o grupo chegou a seu destino.

Imponente, o vapor Matteo Bruzzo dominava a paisagem no porto de Genova.                       

Para Antonella e quase todos do grupo, era a primeira visão do mar.

Ela começou a chorar. E se prometeu que todas as vezes em que visse o mar, enxergaria seu lindo Rio Pó, que deixara para trás, para sempre.                       

Do bolso do casaco tirou, amassadas, as cartas do irmão Carlo e do amado Luigi. E, o bem mais precioso que possuía, a foto dos dois juntos, rindo, com a dedicatória que a esperavam na América, no Brasil, em São Paulo.

Entraram no navio. Era simplesmente horrível a parte destinada aos mais de mil imigrantes pobres, lugar insalubre, mau cheiroso, onde ficaria nos próximos dias e noites. Antonella sentiu que começaria a chorar de novo, tinha apenas quinze anos, era a filha caçula do grupo de cinco irmãos e nunca mais veria os pais. Estava sozinha com um grupo de estranhos – vizinhos e conhecidos que também imigravam para tentar nova vida, longe da miséria e da guerra. Era muito triste fazer essa escolha. Mas seus pais não cabiam no seu futuro. Não tinham saúde para atravessar o Atlântico. Agora ela via que realmente não havia condição para sua mãe ficar naquele lugar, estava muito doente, não tinha muito tempo de vida. Ao menos morreria em casa, ao lado do marido e no seio da família, com as irmãs e primas cuidando dela. Sem os filhos. Mas sempre fora ela, a mãe, quem mais incentivara que partissem para buscar nova vida no Brasil.                       

Foi até o convés, e, aos poucos, a costa da amada Itália se desfazia no horizonte, quando, pela primeira, ouviu o verdadeiro som do adeus: o apito do navio que partia.

_______________________________________________________________________________________________________

Premio Eccellenza Letteraria, Milano, 2018 (Publicado na Coletânea Incontro Letterario a Milano – Oficina do Livro, São Paulo, 2018)

(Imagens: banco de imagens Google)

O “Eterno Doutor”

Inconfundível em campo: muito alto, mais que a média dos outros jogadores e muito magro. Magérrimo. Com o diferencial de, na década de 70, ter-se profissionalizado no futebol quando era estudante de medicina. Sem nunca abandonar o curso. O que gerou um incidente curioso, quando, nos idos de 77, o novo treinador, Vieira, declarou em alto e bom som que jogador que não treinasse não jogaria. Era impossível conciliar os últimos anos de Medicina na USP, os plantões, os estudos e as obrigações com os treinos durante a semana.

Mas ele era genial. A alma do time. Então continuou jogando – e brilhando – mesmo sem treinar.

Esse era o Sócrates. De bem com a vida, acessível aos torcedores, no estádio, na rua, no clube, na mesa do bar, o Doutor era sempre abordado e era um homem simples,  simpático com todos.

No campo, fazia a diferença. Sua inteligência e rapidez de raciocínio o tornavam único. E, com maestria, seus passes de calcanhar deixavam o adversário confuso e dificultava a marcação.

Ficou famoso. O time do interior – Botafogo Futebol Clube, de Ribeirão Preto, time tradicional, antigo, fundado em 1918, não conseguiu segurar sua estrela muito tempo.

O Timão – Corinthians (ou Sport Club Corinthians Paulista, fundado em 1910) o levou em 1978 para se tornar sua estrela máxima na época.

Sócrates, agora já formado, dedicava-se ao futebol e ao novo clube. Tornou-se ídolo. Foi eleito entre os melhores jogadores do mundo. Integrou a seleção brasileira.

Quem o via em campo se encantava com seu jogo. Eu o vi, desde o início de sua carreira, pelo Botafogo. E depois o vi jogar pelo Corinthians. O “Magrão”, o “Doutor”.

Seu tempo passou.

Depois de rápidas incursões em outros times, inclusive o Fiorentina, na Itália, Doutor Sócrates se aposentou como jogador, em 1989, e foi clinicar em Ribeirão Preto.

A saúde o traiu. Partiu aos 57 anos de idade. Muito cedo para um atleta. Cedo demais para um ídolo de sua grandeza.

Declarou, antes de morrer, que gostaria de morrer em um domingo, no qual o Corinthians fosse campeão.

E sua prece foi ouvida. Morreu aos 04.12.2011, dia em que o glorioso Corinthians Paulista foi campeão brasileiro no Pacaembu, em jogo contra o arquirrival Palmeiras.

Seu coração sempre dividido entre os times do Botafogo de Ribeirão e o Corinthians.

Ontem, foi dia que seria seu aniversário, em que completaria 68 anos de idade. E, pelo Campeonato Paulista, na Arena Eurobike (o tradicional “Estádio Santa Cruz”, onde Sócrates começou a carreira) jogaram Botafogo X Corinthians.

As duas torcidas e seus times homenagearam Sócrates, pelo seu dia. O gesto do braço erguido com que ele comemorava os gols que marcava, o minuto de silêncio, e amor e reconhecimento eternos de ambas as torcidas. Temos certeza que, de onde estiver, o Magrão estava no meio de seus torcedores, das duas torcidas. Ele não perderia esse jogo por nada. Sócrates, o eterno doutor.

Memória do blog – De outras saudades

Não gosto de passarinho. Não gosto de violão. Não gosto de nada que põe saudades na gente.(Guimarães Rosa)

Resultado de imagem para passarinho e violão

Como não meditar ao ler essa frase de Guimarães Rosa? Ao primeiro momento, choca – “Não gosto de passarinho”. Como assim? Existiria um único ser humano em toda a história da humanidade que não gostasse de passarinho? Não imagino que isso possa ser possível.      

E ele continua: “Não gosto de violão”. Bem, quanto aos instrumentos e seus sons, cada qual tem sua preferência. Pode ser momentânea, pode ser permanente, mas sempre se gosta mais de um, o som de algum é mais agradável.      

Então ele completa: “Não gosto de nada que põe saudades na gente”.     Ah, agora faz sentido.

Quando a passarada canta ao alvorecer, traz de volta lembranças de tantos outros dias amanhecendo, que se foram, que se queria reter entre os braços, nas mãos, ou nos olhos, mas só se pode reter na lembrança.    

E o violão, ao anoitecer, quando as cordas choram canções de amores perdidos, despertam em todos outras emoções causadas por suas próprias perdas.     

Tudo isso dói.    

Então concluo que Guimarães Rosa gostava, sim, de passarinhos e violão. Mas sofria com a saudade que esses lhe traziam de volta e o peito doía na saudade do que perdeu.     

Carregamos nossas saudades tão bem guardadas, tão escondidas, mas um som, uma música, um rua, uma praça, uma quase-nada as desperta e elas tomam força, nos invadem e nos fazem sofrer até a última gota. Temos de assumir nossas saudades e as lágrimas que elas nos causam. Se temos saudade, tivemos alegrias, amores, paixões, momentos que valeram a pena. Mesmo doendo, elas dão o prazer de trazer à lembrança a felicidade que se foi.    

Ele, Guimarães Rosa, amava passarinhos e violão. Tanto que despertava na alma as saudades mais doloridas.

Poesia da casa – Não solte da minha mão

Por isso eu peço: segure para sempre minha mão
Quando eu atravessei vales sombrios
E também estive em mares revoltos
Eu, muitas vezes, tive tanto medo

Precisava de você então a meu lado.
Porque não tinha forças para ir sozinha
Mas, de mãos dadas com você, tudo isso
Eu superei, e segui o caminho certo

Eram pedras, eram espinhos e eram flores
A cada trecho do caminho, uma surpresa
Guiada por suas mãos firmes e amigas
Eu ia confiante, feliz e sem receios

Agora você ameaça partir, tudo tão de repente
Deixando-me aqui, sem rumo e sem norte
Sem estar preparada para então seguir sozinha
Por favor, eu imploro: não solte nunca da minha mão.

(Imagem: imagem de iStock)

Poesia da casa – Um barquinho de papel

11 ideias de Barquinho de papel | barcos de papel, barco, fotos

Ligeiro desce meu barco

embalado pelo amor

na corredeira da paixão.

Segue seu curso tão livre

ébrio de felicidade,

desejo, atração, tudo intenso.

E ele corre ligeiro

rumo aos braços do meu amado,

buscando esse outro barco,

vai sempre firme, ansioso

e não se cansa nem desiste

em busca de seu destino.

Agora volta meu barco

contra toda a correnteza

tentando superar a tristeza

de apenas ter encontrado

um barco vazio de afeto

que não lhe tinha apego.

Vagaroso, vai sem querer

seguir em seu triste trajeto,

meu pobre barco desfeito.

Não era de boa madeira

igual a esse amor que morreu

em uma triste madrugada:

era um barco de papel

era apenas um falso amor

desfez-se na noite dos tempos

levado pela enxurrada,

era um barquinho de papel,

era um amor de mentirinha

(Imagem: banco de imagens Google)