A água e o rio

Era como se fosse a primeira vez que via o rio. Mas, na verdade, todos os dias olhava para ele, andava em suas margens, atravessava suas pontes. Há muito tempo morava ali.

Olhou com encantamento toda aquela água que descia cantando, enchia o ar com seus sons, trazia de tudo – madeira, flores, lixo, e tudo o que encontrasse pelas margens.

Parou no meio da ponte. Havia algo diferente hoje. Não era o mesmo rio de sempre.

Não conseguia identificar o que estava mudado. Seus olhos eram os mesmos. Seus ouvidos também. O que havia de diferente no rio, que parecia ser a primeira vez que o via?

Recostou-se na amurada, e olhou a água que vinha. Tão límpida, tão decidida, sabia seu destino e se atirava com coragem e alegria. Descia em busca da foz. Nada a detinha. Passava por baixo das pontes, por cima das pedras, contornava todos os obstáculos, mas sabia que chegaria a seu destino sem nada temer.

Depois atravessou a pequena ponte e olhou a água que ia.

Mansamente, sem atropelo nem angústia, ela seguia seu curso tranquilamente, levando em seu dorso as luzes do dia e as dores dos homens que do rio viviam e dele dependiam.

O rio sempre seguia. Dia e noite sem cessar, o rio fluía com a doçura de aceitar seu destino de seguir sempre até encontrar o mar.

Desceu até a beira do rio, e molhou as mãos. Sentou-se e ali ficou, pensando na vida, no dia que começara com tantos problemas. A briga em casa logo cedo. Decidiu ir embora para sempre. Chegou no emprego e encontrou tudo fechado, lacrado, os funcionários inquietos, nenhum responsável no local. Falaram em fraude fiscal. Não sabia o que aconteceria. Resolveu sair dali e ir caminhar.

À medida em que se afastava de casa e do emprego, sentia uma sensação desconhecida, como se outra pessoa estivesse surgindo em seu âmago. Quando chegou na velha ponte que atravessava todos os dias, viu outro rio. Tudo era novidade. Começou então a entender que na verdade era uma nova pessoa. Rompera os grilhões de um relacionamento falido, estava fora de um emprego sufocante. Agora finalmente respirava o que os outros chamavam de liberdade.

Voltou perto da água e tornou a molhar as mãos para lavar o rosto. E entendeu que era uma nova água. A água que vira da ponte, a água em que molhara as mãos, eram outras águas. Essa em que agora tocava era uma nova água, que se renovava a cada instante. Porque não se deixava, jamais, aprisionar, e, uma vez passada, não voltava para passar novamente pelos mesmos obstáculos, pelas mesmas dificuldades. Apenas ia. Não parava nem voltava.

Olhou seu reflexo na água que seguia e compreendeu o destino de quem é livre.