Pontas em laço

Não prenda, não aperte e não sufoque. Porque quando vira nó, já deixou de ser laço. (Mário Quintana)

Quantos laços buscamos, desejamos, sonhamos, cavamos nesta caminhada finita… porque somos apenas uma ponta, precisamos encontrar nosso outro lado e dar a laçada do carinho, do amor, da coexistência. Na família, nos amigos, nos amores… e queremos conseguir completar o laço da paixão.

Porém não é fácil, no meio de tantos caminhos paralelos, perpendiculares, cruzados, interrompidos, achar onde está nossa outra ponta. Quantas vezes nos enganamos e tentamos dar um laço com a ponta errada e fazemos confusão, porque a ponta não é nossa, há uma outra ponta nesse embaraço.

Até que um dia cismamos que encontramos nossa ponta. E vamos, aos poucos, chegando nela, tentando laçar, e ela foge, escorrega, desaparece, se mistura com outras pontas, deixamos de ter a certeza de que é a nossa.

Se puxarmos, ela grita que está sufocada.

E não é isso que queremos. Porque também não gostamos quando somos sufocados.

Deixamos correr mais frouxo, damos todos os espaços, sem perdê-la de vista. Vemos quando se enlaça em outras pontas, que não a nossa.

Muitas vezes nos encolhemos, enrolando-nos em nós mesmos, como um bicho ferido que se enrola em si próprio, tentando desistir, mas descobrimos que só conseguiremos ser laço se tocarmos a outra ponta.

Então insistimos. Um dia, por cansaço, desilusão, desesperança, algum motivo não revelado, ela se entrega. E nos enlaçamos. Suavemente, lindamente, como deve ser um laço.

Com todo o cuidado para não virarmos um nó.

Texto de Martha Medeiros – Strip-tease



Chegou no apartamento dele por volta das seis da tarde e sentia um nervosismo fora do comum. Antes de entrar, pensou mais uma vez no que estava por fazer. Seria sua primeira vez. Já havia roído as unhas de ambas as mãos. Não podia mais voltar atrás. Tocou a campainha e ele, ansioso do outro lado da porta, não levou mais do que dois segundos para atender.

Ele perguntou se ela queria beber alguma coisa, ela não quis. Ele perguntou se ela queria sentar, ela recusou. Ele perguntou o que poderia fazer por ela. A resposta: sem preliminares. Quero que você me escute, simplesmente.

Então ela começou a se despir como nunca havia feito antes.

Primeiro tirou a máscara: “Eu tenho feito de conta que você não me interessa muito, mas não é verdade. Você é a pessoa mais especial que já conheci. Não por ser bonito ou por pensar como eu sobre tantas coisas, mas por algo maior e mais profundo do que aparência e afinidade. Ser correspondida é o que menos me importa no momento: preciso dizer o que sinto”.

Então ela desfez-se da arrogância: “Nem sei com que pernas cheguei até sua casa, achei que não teria coragem. Mas agora que estou aqui, preciso que você saiba que cada música que toca é com você que ouço, cada palavra que leio é com você que reparto, cada deslumbramento que tenho é com você que sinto. Você está entranhado no que sou, virou parte da minha história.”

Era o pudor sendo desabotoado: “Eu beijo espelhos, abraço almofadas, faço carinho em mim mesma tendo você no pensamento, e mesmo quando as coisas que faço são menos importantes, como ler uma revista ou lavar uma meia, é em sua companhia que estou”.

Retirava o medo: “Eu não sou melhor ou pior do que ninguém, sou apenas alguém que está aprendendo a lidar com o amor, sinto que ele existe, sinto que é forte e sinto que é aquilo que todos procuram. Encontrei”.

Por fim, a última peça caía, deixando-a nua: “Eu gostaria de viver com você, mas não foi por isso que vim. A intenção é unicamente deixá-lo saber que é amado e deixá-lo pensar a respeito, que amor não é coisa que se retribua de imediato, apenas para ser gentil. Se um dia eu for amada do mesmo modo por você, me avise que eu volto, e a gente recomeça de onde parou, paramos aqui”.

E saiu do apartamento sentindo-se mais mulher do que nunca.

Dia de poesia – Mia Couto – Pergunta-me

Pergunta-me 
se ainda és o meu fogo 
se acendes ainda 
o minuto de cinza 
se despertas 
a ave magoada 
que se queda 
na árvore do meu sangue 

Pergunta-me 
se o vento não traz nada 
se o vento tudo arrasta 
se na quietude do lago 
repousaram a fúria 
e o tropel de mil cavalos 

Pergunta-me 
se te voltei a encontrar 
de todas as vezes que me detive 
junto das pontes enevoadas 
e se eras tu 
quem eu via 
na infinita dispersão do meu ser 
se eras tu 
que reunias pedaços do meu poema 
reconstruindo 
a folha rasgada 
na minha mão descrente 

Qualquer coisa 
pergunta-me qualquer coisa 
uma tolice 
um mistério indecifrável 
simplesmente 
para que eu saiba 
que queres ainda saber 
para que mesmo sem te responder 
saibas o que te quero dizer 

Hoje, a minha “cententena”

O governo decretou o isolamento.

A cidade foi parando. Os compromissos sendo cancelados ou adiados.

Os carros aos poucos deixaram de circular. O comércio baixou as portas.

Quinze dias, era o que se pensava.

Eu estava viajando. Antecipei meu retorno. Deixei tudo para daí uns vinte dias. Alguns dias depois, comecei a minha quarentena. E completo, hoje, cem dias de isolamento. Uma centena – a cententena. Interminável. Uma eternidade.

Comércio e indústria contando os prejuízos. Empregados perderam seus empregos. As coisas foram mudando de cor. Um alegre e dourado país tropical está cinzamente entristecido.

E todos se perguntam: o que restará depois que esse horror acabar? Escolas fecharão por falta de alunos. Formaturas adiadas porque os calendários letivos não foram cumpridos. Pacientes sem acesso a médicos porque clínicas fecharam.

Médicos morrendo do vírus chinês, por se tratar de moléstia desconhecida. E todos dão palpite. E ninguém sabe do que se trata de verdade.

O Brasil, tão grande, com tantas diferenças, agora igualado na desgraça de uma peste, que uniu norte, sul, leste e oeste. Desinformação, medo e mortes em todos os cantões do país.

Por vezes um iludido diz que a humanidade sairá melhor dessa situação. Por que isso aconteceria?

Quem era ruim antes do covid19 continuará ruim depois; quem era bom assim o será. Os que eram corruptos aproveitaram a deixa e roubaram descaradamente as verbas destinadas ao controle da pandemia. Os que sonhavam com golpes e ditaduras passaram a agir ostensivamente nesse sentido.

Se tudo estava complicado na vida política, piorou pelo menos 5.000%.

A democracia oscila, o mundo todo balança. A podre mídia aproveita para espalhar terror e pânico histericamente.

A tristeza de estarmos, inertes, assistindo nosso mundo desmoronar. Nada do que era antes será novamente. A insegurança total com relação a um futuro, agora mais incerto do que nunca.

Há cem dias presa nesta casa, sem nenhuma expectativa de ter minha vida de volta. Pessoas sãs desesperadas para voltarem a trabalhar. Pessoas doentes morrendo porque não é covid, mas servem para inflar as estatísticas. Pessoas se suicidando porque perderam o pouco que tinham em razão do insano e não justificado isolamento horizontal.

Muito sofrimento para pouca causa. Até agora não se apresentou uma explicação segura para justificar tudo isso. Mas a população está vibrando, até que enfim tem uma desgraça à imagem e semelhança da Europa e dos Estados Unidos, para rechear os maliciosos noticiários.

No meio de tudo isso, vejo meu povo, meu pobre povo, caminhando bovinamente rumo à miséria total.

Não consigo imaginar como será depois que isso acabar.

Mas, nesse centésimo dia de isolamento, eu tenho um medo.

Um medo absurdo de sentir, depois, saudade dos tempos de isolamento.

Descobrir que hoje estávamos em situação melhor do que estaremos no futuro…

Que se consiga esperar

Esperança.

Mirar o futuro.

Acreditar que tudo ficará bem.

Mesmo em tempos sombrios, ter a certeza do amanhã.

O contrário da esperança é a desesperança. O pior sentimento que pode tomar conta de uma alma. Porque desesperar – deixar de esperar – é reconhecer o fracasso, o vazio, a inutilidade.

Quem desespera, desiste. Não persevera.

O cansaço muitas vezes nos faz pensar em desistir. Se houver a firmeza de continuar, mesmo dentro do cansaço, sem desesperança, sem desistência, deixa-se a esperança triunfar. Porque para o cansaço, basta descansar. Não é preciso desistir.

Desistir é para os fracos. Os fortes enfrentam. Perseveram. Esperam com segurança ou esperança.

A esperança faz a diferença entre fortes e fracos, vencedores e perdedores.

Porque desistir é perder antecipadamente.

E agora, quando o mundo atravessa momento difícil, o que mais se vê é desesperança, cansaço e desistência.

Os que conseguirem prosseguir buscando um caminho, vencerão. Os demais já estão mortos, ainda que nem tenham sido contaminados pela peste.

Viver sem esperança é estar morto.

Viver, às vezes é difícil

Hoje vou desabafar. Porque a cada dia está mais difícil viver.

Somos como ilhas: estamos cercados de incompetência e incompetentes e pessoa totalmente sem educação por todos os lados.

Você acorda na nova manhã e faz uma prece por um dia feliz e proveitoso. E os problemas começam logo pela manhã.

Não por você, mas pelos outros. Temos de concordar com Sartre: o inferno são os outros.

Você vai ao banco. Munido de paciência e máscara. Não consegue sacar. Seu cartão não é aceito pela máquina. Um sujeito que se acha autoridade impede que você acesse o andar superior onde está seu gerente prime. E não permite que você entre na agência do térreo. O jeito é ir embora.

Pelo app transfere fundos para outro banco e vai a uma agência.

Novamente munida de paciência e máscara.

Outra fila.

O “sistema” limita seu saque a uma quantia ridícula. O gerente não atende sem prévio agendamento através de uma central.

E dizem que a culpa é do computador. Muitos engolem essa desculpa. O computador é uma máquina. Burra, sem dados nem memória. Um humano a alimenta. Se o humano é burro e limitado, o computador será burro e limitado, à imagem e semelhança de quem a mune de dados.

Sem contar que você está na fila quando uma zinha qualquer adentra no recinto e sem cerimônia passa pela fila e corre na máquina que alguém acaba de desocupar. As pessoas só olham, sem coragem de interpelar. Eu a advirto  – “ei, dona, não viu a fila? Espere sua vez”. E ela tem de sair dali para o próximo da fila usar a máquina, mas sai pisando duro e resmungando. Sem educação, sem respeito e sem noção. Mas na minha frente não passa.

Aí você passa no mercado – máscara e paciência, fila para entrar. Fila para pegar,mantimentos. Fila para tudo. Fila para pagar. Adiei o máximo possível. Há mais de quarenta dias sem entrar em supermercado. Mas hoje não deu, foi preciso enfrentar.

E finalmente chega em casa. Prepara o whisky e a pipoca, pega o computador e pensa que vai relaxar pouco e começar a escrever.

Mas as crianças do condomínio tocam cinco ou seis vezes a campainha para pedir as bolas que atiraram no seu quintal.

Eu já avisei que não devolvo bola nem brinquedo. Não sou gandula para ficar pegando bola.

Embora more em um condomínio fechado, não conheço – nem quero conhecer – nenhum vizinho. Vivo dentro de minha casa. Sou antissocial e não gosto de vizinhos. E tudo que atiram no meu quintal é devolvido direto na portaria no dia seguinte.

As crianças não dão sossego. Porque não têm educação e nem têm culpa de serem tão inconvenientes. As mães só podem dar o que têm, e embora se achem muito importantes em seus carrões importados e plásticas mal feitas, também não têm um mínimo de educação para dar aos filhos.

Os pais, nem falar. Passam todos os momentos livres no salão aqui na frente da minha casa falando palavrões e bebendo. Isso até o meio da madrugada, noite após noite.

E se acham de alto nível, confundem ter quatro tostões com educação e sofisticação. Chamo a segurança para vir resolver. Vem o síndico. Que eu nem conhecia. Neto de um juiz com quem trabalhei no milênio passado. Educadíssimo. Simpático e com vontade de resolver os problemas.

Mas sei que ele não poderá dar educação nem às crianças nem aos pais.

Mais o problema da funcionária que está com garganta inflamada mas não recebe atendimento médico municipal porque só atendem covid (!!!).

Complicado viver. Por causa dos outros.

E isso tira a inspiração para escrever. Gasta meu tempo com aborrecimentos.

Vou ver se compro uma ilha. Se não conseguir, talvez arranje um emprego num farol – de preferência uma sentinelle d’Iroise, quem sabe o La Jument ou o Pierres Noires, meus preferidos, e me mude para um lugar onde nunca mais verei um ser humano de perto. Nem espelho terei para não me ver.

Aí serei feliz e talvez viva em paz.