Esse assunto do covid se assemelha ao ralinho do fundo de todas as pias: a água rola, rola, mas é lá que ela sai. Pode até tentar evitar. Porém, não tem outro caminho.
Você tenta ignorar esse vírus, esquecer a peste, mas eles perseguem, atropelam, barram o caminho, e no final se está falando de covid.
Aguentei quase oito meses os bobotéricos afirmando que a humanidade vai sair melhor, que os homens vão se apurar e tantas outras bobeiras, que nem respondo. É melhor ouvir e deixar o assunto morrer, parar por aí.
Não vi nada melhor, agora que a terrível epidemia perde sua força, não matou tantos quantos prometeu, não fez nem aconteceu nem a metade do que tanto propagaram os arautos do apocalipse.
Aliás, o prefeito de São Paulo nem usou todos os caixões que adquiriu com dinheiro público – em lugar de aplicar o dinheiro para atender aos que estavam vivos e doentes, resolveu comprar milhares de caixões para eventuais futuros prováveis defuntos da peste.
Quem era ruim está tão ruim quanto era antes da doença – ou um pouco pior. Quem era bom, aproveitou para exercer sua vocação de bondade e solidariedade quando tantos dela precisaram. E ponto.
O todo piorou bem – antes víamos sorrisos. Agora vemos focinheiras. Nenhum sorriso. E, talvez porque tenhamos somente os olhos das pessoas como ponto de referência, estamos descobrindo olhares frios, indiferentes, de raiva, de ódio, de inveja, de pura maldade.
E onde ficou o ser humano bondoso e solidário, que – de acordo com o discurso dos polainas-esotéricos – deveria surgir ao final da epidemia?
Ontem, sexta-feira, caminhando à beira-mar, percebi um casal em sérias dificuldades.
O mar estava estranho, virado, de repente ondas intensas faziam a altura da maré subir repentinamente.
Num desses de repente, um senhor caiu e não conseguiu se levantar. Antes da onda, o mar não chegava ao meio das canelas dele e da esposa – ambos idosos, cerca de dez a doze anos mais velhos do que eu.
Enquanto eu me aproximava, dezenas de pessoas passaram pelo senhor caído e pela esposa desesperada tentando impedir que se afogasse – a água lhe chegava quase à cintura e ela não possuía força para levantar o marido.
E as pessoas passaram – homens fortes, jovens exibindo os músculos de academia, mulheres bem mais novas e bem mais fortes.
Mas um casal de idosos em dificuldades era invisível para tanto egoísmo e falta de compromisso com o próximo.
Aproximei-me o mais rapidamente que consegui. Pedi a ela que se acalmasse, dizendo que tudo ficaria bem, e vi que o senhor, ainda que já sem forças, e engolindo água, estava consciente. Não havia sinal de guarda-vidas na praia, embora fosse dia de sol.
Pedi a Deus que me desse força e cuidasse da minha coluna (esta semana estive travada por conta de uma lesão antiga), porque eu não iria deixar um homem morrer, fazendo de conta que não vira o que acontecia só para não doer minhas costas. Cheguei, acalmei a esposa, constatei que o homem estava consciente (ela disse que ele sofreu um AVC e quis, depois de tanto tempo, ir até o mar, onde a onda traiçoeira o derrubou). Com cuidado e quase nenhuma dificuldade, colocamos o senhor de pé. Esperei que se acalmasse. Ajudei-o a se voltar para a praia, enquanto o mar abaixava bem e ele conseguiu caminhar.
Ela chorava e não sabia como me agradecer. Ele queria agradecer. Eu disse a eles – “agora está tudo bem, fiquem com Deus e tenham cuidado quando estiverem no mar”. Ele pegou na minha mão, olhou para mim (só então eu vi seu rosto) e disse “obrigado, filha”.
Foi um choque.
Ele não tinha idade para ser meu pai e me chamou de filha.
E eu vi em seus olhos o olhar lindo do meu pai – seus olhos eram de um raro tom de verde, como rara era a cor dos olhos do meu pai – um misto de mar com garapa. Eu senti que meu pai olhou para mim naquele momento.
Prossegui, chorando de emoção e de saudade do meu pai, a minha caminhada diária.
E me perguntei: onde estão as pessoas que a peste chinesa melhorou, se ninguém se importou com um senhor que se afogava e com a esposa desesperada porque não conseguia levantá-lo sozinha, em sua fragilidade de idosa?
Vamos, sim, sair da pandemia.
Com a mesma porcaria de humanidade que entramos.
Lamentável
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