
– Venha, Ernesta, me ajude a me levantar e a andar, que precisamos ir…
Estendeu a mão e foi inundado pelas lembranças. Não recentes, mas de décadas antes, lembranças que já julgava esquecidas, mas ali estavam, vivas, esperando um sopro de vida nas cinzas para reavivar o braseiro das emoções.
Algumas memórias eram próprias, outras eram retalhos dos relatos da mãe, por se tratar de época imemorial por sua pouca idade.
Ernestina, a mulata linda que um dia batera palmas procurando emprego. Era a cara da fome, mas de um sorriso cativante e um olhar penetrante. Sua mãe se comoveu com o pedido da garota e mandou entrar. Sempre havia, naquela casa, um prato de comida para quem ali chegasse.
Depois de alguma conversa, ao saber da triste sina da menina sem família, sua mãe a acolheu. Ficaria ali para ajudar a velha do Carmo, que trabalhava há anos para a família, e estava em vias de se aposentar pelos achaques da idade.
Assim Ernestina entrou na sua vida, quando tinha quase um ano. Era ativa, de bom humor, cantadeira, sempre sorridente. E se apegou ao pequeno. Ela o chamava de “Meu branco”. Sem racismo, sem rancor. Com amor.
Ele demorou andar. Ernestina – a essa altura a verdadeira dona da casa, pois Carmo se havia desligado do serviço e a mãe saía o dia todo para trabalhar na loja de tecidos da família – dizia sempre – “cada um tem seu tempo, patroa, deixa meu branco sossegado. No dia em que ele achar que é hora ele sai andando.”
E quando via alguém o pegando pela mão para tentar fazê-lo andar, corria e o tirava – “ele vai andar sozinho, por si próprio, não pela mão dos outros.”
Ela quebrou um raminho em forma de manivela, e dava a ele a parte baixa enquanto segurava na parte alta, e lhe dizia – “se quiser andar, é só se apoiar nesse raminho e você terá segurança. Estou sempre aqui perto para o que você precisar. Nunca precise pegar na mão dos outros para andar. Esse é o segredo de ir longe na vida.”
E assim ele aprendeu a andar – segurando em apenas uma ponta de um galhinho seco. Mas com a certeza de que Ernestina nunca o deixaria cair.
Isso ele sabia do que a mãe lhe contara. Mas havia tanta coisa que Ernestina o ensinara e ninguém sabia…
A primeira vez que chegou machucado da escola, a mulata quase enlouqueceu de pensar que alguém havia batido no seu menino. Não falou de ir lá nem perguntou quem lhe batera.
Limpou o sangue, deu-lhe almoço e o chamou para o gramado do quintal. Chegando lá, tirou os chinelos de trabalho, ajoelhou-se para ficar da mesma altura que ele e disse: “Vem aprender a bater em moleque atrevido”. E começou ali uma série de ensinamentos de luta, de defesa e até mesmo um pouco de capoeira.
Ela dizia – “se ele vem de esquerda, mostre-lhe a direita, se ele vem de direita, mostre-lhe a esquerda” e fazia o movimento de desvio dos socos. “Se ele vem de pontapé, faz que vai para a frente, balança e sai para trás que ele cai” e fazia um movimento que parecia capoeira. E, seja um moleque atrevido, seja uma mulher enlouquecida ou seja a própria vida, não se deixe atingir, saia antes que a pancada chegue”.
Assim Ernestina lhe ensinava a vida e a viver.
Ela lhe dava toda a atenção que ele queria. Ouvia suas histórias, e contava as próprias. Ensinava a cantar. Só não podia fazer as lições com ele, porque era analfabeta. E isso lhe doía. E a dor da mulata doía no coração do menino.
Assim, depois das lições de casa, ela acabava as tarefas da casa, e os dois se sentavam para estudar – agora, ele o professor e ela a aluna. E desta forma ele alfabetizou Ernestina. Ela não gostava de ler, mas se encantou em aprender os números.
Um dia ele chegou da escola com um corte. Em uma brigas – agora ninguém mais batia nele – um garoto sacou de um canivete e o riscou no braço.
Ernestina não perdoou.
Apresentou-lhe uma navalha. E, com a sabedoria de quem viveu nas ruas, ensinou: “Não a pegue se não tiver coragem de usar. Ou ela se voltará contra você na mão do outro.” E fez um movimento rápido, abrindo a navalha e riscando o ar.
“Se você souber sacar e bater a navalha, nem vai precisar usar. Treine abrir. Porque quando alguém vê o lutador bater a navalha com domínio, já corre antes de experimentar a lâmina.”
E foi assim que ele ganhou sua primeira arma.
Ernestina ficou no passado. As brigas na saída da escola também.
Vieram as pessoas más e egoístas com quem conviveu. E as brigas com a vida. Mas ele estava ali. Era um sobrevivente.
No entanto, agora estava começando a ter dificuldades para andar. Precisava que alguém o ajudasse a se levantar, a se equilibrar para dar os passos. E não gostava de esperar que outra pessoa estivesse disponível para auxiliar.
Ganhou uma bengala. Resistiu a princípio, mas entendeu que essa bengala era a outra ponta do raminho. Que poderia andar sozinho e não pela mão dos outros. Então se apegou ao objeto, e deu-lhe um nome: Ernesta. Aquela que esteve sempre a seu lado, ainda que não pegasse na sua mão.