Lendo outros cronistas, descobri que todos estão sendo atingidos pela quarentena eterna. Esse isolamento está tornando quase impossível o escrever. A vida perdeu o encanto. Não há mais graça em nada. Os afetos ficaram para depois – se é que haverá um depois. Não podemos estar com os vivos nem velar os mortos. A internet está se tornando um porre, maniqueísta. Prós e antis. Tudo. Pró-tudo e anti-tudo.
Não há mais rodas de conversas leves e risadas.
Tudo tem de ter um propósito, uma finalidade, tudo sério, clima de velório. Se alguém tenta um atalho, é atacado por todos. Vamos ser sérios! Vamos discutir política! Vamos brigar!
De repente nosso mundo se resumiu a uma casa.
Os sabores do mundo se esvaíram nesses dias e noites que se confundem e nos confundem.
Já nem mais sabemos que dia é – todos os dias são domingo? Não. Porque domingo é dia de missa e não há mais missa. Então há mais de setenta dias que não há domingo?
Então todo dia é sábado? Não. Porque sábado é dia de passear, de parque, de clube e está tudo interditado. Então mais de dois meses sem sábados?
Ah, já sei, todo dia é sexta-feira? Também não. Porque sexta-feira é noite de happy hour, de balada, de restaurante, de amigos. E está tudo fechado. São mais de dois meses sem sexta-feira.
Podemos dizer que é segunda-feira? Não, de jeito nenhum! Porque segunda-feira é dia de trabalhar e há mais de setenta dias que ninguém trabalha.
O que está acontecendo? Revogaram o calendário gregoriano, que nos regia desde os idos do século XVI? Como isso aconteceu?
Como nos separaram das pessoas amadas, como nos cancelaram as viagens, como decidiram nos enterrar vivos em nossas casas e nós permitimos isso? Somos hoje a boiada confinada esperando a hora de rumar ao matadouro.
Ah, e por falar em calendário, pegue todos que tiver em sua casa e jogue no lixo. Não serve para mais nada. O ano acabou.
O ano acabou e ponto final.
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