Non, rien de rien, / non, je ne regrette rien.
Ni le bien qu’on m’a fait, ni le mal, tout ça m’est bien égal.
(Michel Vaucaire / Charles Dumont)
Tento imaginar como farei meu testamento. Não relativo a herança de bens, do que deixar ou para quem deixar, mesmo porque nada terei a deixar nem ninguém a quem deixar.
Mas meu testamento de vida, um balanço geral do que vivi. Ouço essa canção imortalizada na voz de Piaf e constato que é realmente inspiradora. Mais, , est-ce que je regrette quelque chose ou est-ce que je ne regrette rien?
Se quando chegar minha hora de partida eu puder dizer que nada lamento poderei considerar que fui feliz.
A bem da verdade, pouco ou nada lamento do que fiz em minha vida e do que fiz de minha vida.
Algumas coisas que não fiz eu lamento, porque o tempo passa rápido e se eu perdi a oportunidade quando ela me apareceu, deixei de fazer, dificilmente terei outra chance.
O que lamento? Nada importante. Lamento não ter insistido para voar de asa delta. Lamento não ter imposto minha vontade quando não me permitiram saltar de paraquedas. São duas ações que morrerei lamentando não ter realizado.
Esperei horas para voar de asa delta, no tempo do Pepê, mas o vento não colaborou e acabei desistindo e nunca mais tive outra chance.
Quando resolvi saltar de paraquedas não foi permitido em razão de sério problema de coluna, o curso não me aceitou. E eu aceitei o não. Isso eu lamento. A coluna é minha, a dor é minha, e a consequência também seria minha, deveria ter insistido, mas acabei me resignando e deixei de lado esse sonho.
Lamento não ter ido estudar fora do país, quando não tinha casa, marido, cachorro e papagaio. Depois já não era possível, deixar tudo isso aí e me mandar para o outro lado do Atlântico.
Lamento não ter corrido atrás dos meus sonhos, vivido minhas paixões, e sempre me conformado com os padrões impostos.
Lamento não ter cavado oportunidade para conhecer pessoalmente Vinicius de Moraes, meu ídolo maior, Guilherme de Almeida, poeta de minha infância, Ulisses Guimarães, que mostrou que valia a pena insistir no Brasil e Sergio Vieira de Mello, que tanto admirei. Agora é tarde, só em outra dimensão poderei estar com eles.
E do que fiz, o que lamento? Nada me ocorre neste sentido. Tudo o que fiz foi importante para me tornar uma pessoa melhor, as tristezas lapidaram minha alma e me tornaram menos ácida, os contratempos amaciaram minha impaciência e os momentos de ira calibraram a adrenalina.
Não trago comigo mágoas nem rancores. Não odeio, apenas desprezo publica e solenemente as pessoas que me prejudicaram deliberadamente. Mas não tenho raiva. Esses sentimentos pequenos só servem para envenenar nossa realidade, tornando-nos irascíveis e insuportáveis. Sou capaz de perdoar, embora não consiga esquecer esses acontecimentos.
Se não existem vidas felizes, mas sim momentos de felicidade, que cabe a nós prolongarmos sua duração, diminuindo a importância do triste e alongando os segundos de alegria, vejo que minha balança pende mais no prato da felicidade.
Para algumas pessoas o sofrimento é companheiro inseparável e fonte de inspiração. Não fossem os amores mal vividos, as paixões mal resolvidas, e não teríamos poesia, porque o poeta só é bem grande se sofrer, nas palavras de Vinicius de Moraes.
Mas para os outros, simples mortais, o que vale mesmo é a felicidade.
Pretendo viver bastante ainda, e quem sabe começo a praticar uns atos horríveis, só para ter o que lamentar na hora derradeira?