Em tempos de isolamento social, quantas pessoas estão absolutamente sozinhas em suas residências? Quantas estão separadas das pessoas que mais amam? Qual a verdadeira finalidade desse “confinamento humano”?
São tantas as questões, mas hoje não quero falar de doenças, de vírus, de tristezas.
Hoje quero celebrar a vida.
Quando celebramos a vida, dificilmente o fazemos em solidão. Mas com outra – ou outras – pessoa.
E qual o primeiro gesto desse ato? Exatamente, o nosso velho e conhecido abraço.
O abraço é exatamente aquele instante mágico quando duas pessoas se tocam, corações batendo junto e trocam e emoção do encontro. Em todos os níveis – desde se abraçar o filho que acaba de nascer até o grande amor de sua vida que desperta todos seus instintos.
E, se vamos celebrar com muitas pessoas, deixamos aberta a porta de nossa casa e vamos recebendo os abraços.
Um amigo chega trazendo um abraço e um vinho. Outro chega trazendo um abraço e pães feitos por ele no maior carinho. E assim continuamos até encerrarmos nossa festa de celebração da vida.
E se nossa vida fosse uma música? Qual música seria essa? Que abre a porta e nos deixa recebendo os amigos, um a um, e seus preciosos abraços, até a grande festa que ali acontecerá?
Sem dúvida alguma, seria o Bolero de Ravel.
Timidamente uma percussão será a abertura da porta. Que assim permanecerá até a saída do último convidado, depois de encerrada a recepção.
E todos irão chegando e entrando, num encontro mágico de sons, de convergências rítmicas, grupos que se formam, que se desfazem e se refazem entre outras pessoas.
Assim é o Bolero: aberta a porta, chega a Flauta transversal. Com sua delicadeza. Invocando a natureza. Com o Flautin e seu som suave.
E vêm as Clarinetas, que chegam quase junto com o Fagote e contra-fagote.
Quando os sons já estão montados, já temos uma melodia se formando, entram o Oboé, e o Sax tenor. Aí entra o Sax soprano e o sopranino. E a melodia cresce. E a festa vai se animando.
Com a chegada da Trompa, dos Sopros de madeira e do Trombone e da Tuba temos uma alegria contagiante em curso.
A percussão cresce. Aparece. O coração de todos e de cada um bate no ritmo do pulsar dos sons. Os celos se fazem ouvir.
Aí, no ápice da alegria, entram os timbales e os violinos. E a festa se completa. E se prolonga. Nossa animação parece não ter fim.
Até que a festa, como tudo o que existe, chega a seu fim. Encerra-se. A mágica se acaba. Vem o mesmo silêncio que a precedeu. E tudo volta a ser como era.
Exatamente como a vida. Nascemos quando abrimos nossa porta para a vida. E vamos nos encontrando, nos abraçando, festejando, até o momento final, que voltamos, sozinhos, para o mundo desconhecido e tudo volta a ser como era antes de nossa passagem.
Mas a diferença é que quando nascemos não temos memórias. Nós as construímos ao longo da vida, somando os sons dos diferentes instrumento e pessoas que nos tocaram e que nós tocamos durante a trajetória. Memórias dos abraços, das alegrias, das angústias. Até o derradeiro momento em que nos despedimos de tudo, em plena festa.
Acredito que Ravel celebrou apenas a vida através de sua música. Com sua riquíssima melodia, explorando o timbre, o alcance, a capacidade sonora de cada instrumento. Apenas a vida. E isso – a vida – é tudo que temos realmente de nosso, que nos é dado ao nascer e devolvemos ao morrer.
Mas não encontro, nessa obra magnífica, nenhuma pausa significativa. Nem um instante sequer de silêncio. Uma melodia pulsante desde a chegada da flauta.
Tantos abraços, tantos encontros. Até o final.
Então insisto – esse isolamento social e qualquer outra tentativa de “confinar” o ser humano é negar-lhe o abraço do outro, o encontro. É a negação da própria vida.