Ela leu a lista mais uma vez. Voltou à cozinha, e tornou a conferir os mantimentos.
Vestiu um velho macacão de mecânico que foi do pai por cima das roupas, calçou galochas, os cabelos presos dentro de um grande lenço, máscara e luvas. Saiu rapidamente. Andava encolhida. Foi ao mercado, separou tudo o que ainda precisava, chamou um carregador e mandou entregar na sua casa. Disse que podia deixar tudo na varanda da frente.
Passou na farmácia, para mais algumas compras, conferiu mentalmente se já havia esgotado a lista e voltou quase correndo para casa.
Sentou-se na escadinha da varanda, esperando as compras. Logo o rapaz apareceu na esquina. Ela recebeu as compras. Arrastou as caixas pelo corredor lateral até a porta da cozinha. Usando o álcool e o desinfetante que já deixara ali, foi limpando cada peça e colocando no chão da cozinha. Tirou o macacão, galochas, luvas, lenço e máscara e os deixou sobre o tanque. Passou álcool nas mãos e nos braços e entrou.
Trancou a porta com chaves e ferrolhos. Conferiu se todas as portas, janelas e cortinas estavam devidamente fechadas. Estava com muito medo.
Quando veio a ordem de quarentena, com isolamento total e aviso que todo o comércio seria fechado em 48 horas, com a explicação que um vírus muito contagioso estava se espalhando rapidamente e dizimando a população, sentiu-se insegura e apavorada.
Elaborou uma lista que lhe permitisse passar mais de cinco meses sem sair de dentro de casa, onde morava sozinha. Decidiu que não abriria a porta para nenhuma pessoa, e que não morreria durante a epidemia.
Guardou as compras, tomou um banho e foi dormir.
E assim viveu meses seguidos. Com portas e janelas trancadas, fazendo o próprio pão, cuidando de si e da casa, sem nenhum contato com o mundo exterior.
Afinal, ninguém sabia como era a forma de contágio desse vírus, e quem fosse contaminado morreria em poucos dias. Não havia salvação.
Na dúvida, guardou-se completamente de qualquer contato humano. Aproveitava o tempo para ler, ouvir músicas, sempre resguardada na confortável residência. Com o passar dos dias percebeu que os sons externos foram diminuindo. Já não havia mais aviões passando sobre a casa, que era rota de aeroporto. Também o barulho de pessoas conversando nas calçadas, os gritos dos vendedores, a sirene de ambulâncias, o apito do guarda noturno. Tudo foi silenciando.
Ela dormia a maior parte do tempo. Não percebia o quanto estava necessitada de sol, de alimentos com mais sustância, que estava enfraquecendo.
Os dias se arrastavam. E semanas e meses se foram.
Os mantimentos já estavam se acabando.
Ela teria de sair novamente. O pavor e a ansiedade a consumiam. Não queria morrer de peste. Mas chegaria o momento em que precisaria ir a um mercado. Foi diminuindo a ingestão de alimentos para ficar mais tempo em casa. Até o dia em que não havia mais nada para preparar uma refeição.
Apavorada, preparou-se para sair. Abriu a porta, ninguém à vista. Foi até a esquina e chegou na avenida, antes local de intenso movimento.
Não via pessoas nem carros nem ciclistas. Lojas fechadas. Sujeira para todo lado. Começou a perceber corpos decompostos nas portas das casas.
Precisava comprar comida. Estava em transe. Continuava a andar sem rumo, mas não avistava qualquer sinal de vida.
Estava com medo de respirar. Mesmo de máscara, poderia contrair o vírus e também morreria, e não queria morrer – desafiara o terrível vírus e pretendia sobreviver à peste.
Ocorreu-lhe ir até a loja de uma conhecida, onde poderia ter notícias sobre o que aconteceu nos últimos meses.
A porta estava aberta. Saltou sobre alguns corpos amontoados na calçada e entrou na pequena loja. Completamente abandonada. Nem sinal de pessoas.
Voltou-se para sair e se assustou com a imagem no espelho. Demorou a se reconhecer – aquela figura magra, quase esquálida, com uma cor de cera, olhos fundos, cavados…
Tentou retornar à casa, no meio do nada que restara na cidade morta. E percebeu que era a única pessoa que não morrera na epidemia. Mas nem por isso sobrevivera, de certa forma estava, também ela, morta.