Doce surpresa para os amargos dias da quarentena eterna

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Comecei a escrever há pouco tempo. Ou melhor, publicar. Sempre escrevi, mas não é fácil publicar, pelo menos na primeira vez. Depois nos acostumamos e vamos publicando livros, textos, o que vier…

Meu blog foi inaugurado em 2008. O que requer um bocadinho de coragem. Porque blog de literatura nesse mundo consumista e exibicionista, não é muito aceito. Mesmo assim, na primeira plataforma, eram milhares de leitores. O que me servia de incentivo a continuar escrevendo.

Crônicas escolhidas do blog se tornaram meu primeiro livro. Emoção indescritível. Vai-se do pavor ao júbilo, entre os atos de entregar os originais na Editora para análise e ter em mãos o livro impresso.

Depois vieram os outros e tenho orgulho do que escrevo.

Há dois anos, o primeiro prêmio literário, em Milão.

No ano subsequente, novo prêmio.

No início deste ano, menção honrosa em Belo Horizonte.

Primeira vez uma classificação com júri totalmente nacional, na primeira vez que concorri aqui no Brasil.

E tivemos os adiamentos e cancelamentos de edições, de encontros, de festas, em razão da situação de isolamento que nos foi imposta pelo atual contexto.

Para movimentar um pouco nosso desânimo, as ajebianas do Rio de Janeiro (AJEB-RJ – Associação de Jornalistas e Escritoras do Brasil, seção Rio de Janeiro) fizeram um Concurso Virtual Relâmpago, para marcar, ao menos no mundo virtual, o 50º aniversário daquela associação. Eram sete categorias.

Resolvi participar, totalmente sem pretensões, eis que concorreria com escritores “de verdade”. Mas não consegui escolher uma única categoria, e, por ser permitido concorrer em mais de uma, escolhi quatro.

Hoje, colocando um pouco de aconchego nessa solidão compulsória, chega o resultado do concurso. Fui premiada nas quatro categorias em que concorri (conto, crônica, poesia e haicai).

Que sensação boa. Entrar em um certame e conseguir ótimas classificações. Receber não só os cumprimentos, mas também o reconhecimento.

Isso motiva a continuar escrevendo e, mais ainda, esquecer por algumas horas todas as tristezas que nosso país atravessa.

Obrigada, Ajebianas RJ, vocês fizeram meu dia mais feliz!!!!!!!!

Trecho de Albert Camus – A Peste

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     …

     Os tumultos junto às portas da cidade, durante os quais os guardas tinham sido obrigados a lançar mão de suas armas, criaram uma surta agitação. Tinha havido feridos, sem dúvida, mas falava-se de mortos na cidade, onde tudo se exagerava, por efeito do calor e do medo. Em todo caso, é verdade que o descontentamento não cessava de aumentar. Que as nossas autoridades tinham receado o pior e estudado muito a sério medidas a serem tomadas no caso de esta população, mantida sob o flagelo, ser levada à revolta. Os jornais publicaram decretos que renovavam a proibição de sair e ameaçavam com penas de prisão os infratores.  …

     No calor e no silêncio, e para o coração em pânico de nossos concidadãos, tudo assumia, aliás, uma importância maior. Pela primeira vez, todos se tornaram sensíveis às cores do céu e aos odores da terra causados pela mudança das estações. Cada um compreendia com terror que o calor ajudaria a epidemia e, ao mesmo tempo, cada um via que o verão se instalava. … Para todos os nossos concidadãos, o céu de verão, estas ruas que empalideciam sob os tons da poeira e do tédio, tinham o mesmo sentido ameaçador que as centenas de mortos que a cada dia pesavam sobre a cidade. … Tinham perdido o brilho metálico das estações felizes. O sol da peste apagava todas as cores e escorraçava qualquer alegria.

     Era essa uma das grandes revoluções da doença.

     …

Encanto e paixão

Gostei da luz dos olhos dele. Gostei que estava me encantando, gostei de não poder me encantar e mesmo assim estar me encantando… (Tati Bernardi)

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A vida só vale a pena ser vivida se houver paixão. Paixão verdadeira, aquela coisa de pura adrenalina. Ansiedade, taquicardia, náusea… tudo isso faz parte da paixão. Mas, qual a origem da paixão, seja por uma pessoa, uma atividade, um objeto? De onde surge a paixão, qual seu ponto de partida?

O encanto.

O encantamento. Alumbramento. Feitiçaria. Arrebatamento.

Seja qual for o termo usado, a paixão nasce do encanto ou do encantamento.

Não há como se apaixonar sem se encantar.

E o que encanta? A beleza? A riqueza? A facilidade? Não sei. Aí está o grande mistério. Não é por acaso que enfeitiçar é sinônimo de encantar.

Nas lendas há sempre um encantamento, ligado à ideia de feitiçaria – o canto das sereias, o veneno na maçã, o sono da Bela Adormecida, a desgraça do protagonista de A Bela e a Fera…

Mas aqui, na nossa triste e cinza realidade, não é fácil encontrar feiticeiras. Nem fadas nem sereias nem bruxas malvadas…

Mas o encanto sobrevive a toda essa crueza da vida real. E nos encantamos por um olhar. Por um sorriso. Por um modelo de carro. Por uma cor de parede. Por uma paisagem, pela curva de um rio, pela encosta de uma montanha, pela forma de uma flor… ah, são tantos os encantos para quem está aberto à paixão pela vida!

O encanto é a partida da paixão. E a paixão o combustível do amor. Que é o sustento da vontade de viver.

Podemos levar dentro de nós um encantamento sem fim, que dura toda a vida. Podemos apenas nos lembrar de alguém que nos encantou um dia “… Fiquei parado, o coração batendo, ela se riu. Foi o meu primeiro alumbramento.”(Manuel Bandeira), e essa lembrança sempre vívida, como um alimento imperecível que trazemos no bolso, para garantir a refeição quando faltar comida.

E também podemos levar vivo, dentro do coração, por toda uma vida, o encantamento que alguém provocou em nós. Uma espécie de compensação nos infortúnios e nas tristezas. Quando tudo parece desmoronar, sacamos, lá do fundo do bolso da emoção, a lembrança de um olhar, um toque, um beijo, e saciamos nossa fome de felicidade e enganamos a realidade.

E então sonhamos com a vida que não tivemos, com o amor que não desfrutamos, com a felicidade que não chegamos a conhecer.

E, se de repente tudo der certo, os astros se unirem para nos possibilitar essa alegria, a maior vingança que podemos ter em relação a todos os momentos nublados, será ver raiar o sol de viver plenamente essa paixão arrebatadora.

 

Tributo a Olga Savary (Belém do Pará, 21.05.1933, Teresópolis, 15.05.2020)

Nos últimos dias a arte brasileira sofreu perdas irreparáveis. O vírus resolveu ceifar nossos poetas Sérgio Sant’Anna, Marcus Vinicius Quiroga e, ontem a poeta e escritora Olga Savarys. Palavras forte, pensamento ordenado, sensualidade dosada, sua poesia traduz a alma feminina sem rodeios. Ela é eterna. Ela se eternizou em sua poesia.

 

Caiçuçáua

Sempre o verão
e algum inverno
nesta cidade sem outono
e pouca primavera:

tudo isto te vê entrar
em mim todo inteiro
e eu em fogo vou bebendo
todos os teus rios

com uma insaciável sede
que te segue às estações
no dia aceso.

Em tua água sim está meu tempo,
meu começo. E depois nem poder ordenar:
te acalma, minha paixão.

O futuro e os sonhos

Conhecer o futuro. Saber o que há por vir. Em geral as pessoas tentam adivinhar, buscam modos de desvendar, através de videntes, leitores de areia, conchas, mãos, borra de café…

Mas a ninguém é dado saber o que o tempo e a vida nos reservam.

Vivemos às escuras, de olhos vendados com relação à nossa própria sorte.

Se pudéssemos saber tudo o nos espera, a vida seria bem sem graça. Nenhuma surpresa. Tudo no respectivo quadradinho. Já estaríamos preparados para as alegrias, as lágrimas, as dores, as perdas. Mas, por outro lado, não nos seria dado sonhar. Porque os sonhos preenchem exatamente o vazio do não saber o que será de nós.

Então sonhamos.

Crianças, sonhamos com brinquedos, brincadeiras, natais e casa de vó.

Adolescentes, sonhamos com boas notas, grandes amores, liberdade.

Jovens, sonhamos com a faculdade e com a vida adulta.

Sempre sonhamos um passo à frente do que vivemos.

E os sonhos, muitas vezes, nos ajudam a manter a sanidade, a vontade de continuar vivendo. Porque, de certa forma, sonhos e esperança, voltados para o futuro, são nosso sustento na caminhada até o encontro final.

 Quem começaria um namoro, sabendo que logo sofrerá por essa paixão?

Quem se casaria, sabendo que o casamento não demoraria a naufragar?

Quem faria um curso universitário com a certeza de não seguir aquela carreira?

E tantas outras situações que nos surpreendem positiva ou negativamente seriam conhecidas antecipadamente. As boas surpresas não existiriam porque deixariam de ser surpresa. E para não conhecermos os fracassos, o quanto deixaríamos de viver… nunca conseguiríamos amadurecer. Porque umas pancadinhas de vez em quando nos ajudam a encarar a realidade.

Nunca sabemos se depois da chuva haverá um arco-íris. Daí a beleza de quanto o avistamos, sonhado mas inesperado.

Você sabe que o fogo queima porque um dia ali encostou a mão. Ou levou um choque ao mexer em fios de eletricidade e aprendeu com isso. Surtou com uma paixão ardente que gerou lágrimas e aprendeu a dosar os sentimentos.

Mas se você soubesse previamente tudo isso, para que passar por essas experiências?

Perderíamos nossa humanidade e nos tornaríamos robôs – previsíveis, programados, frios, sem emoções.

Prefiro viver nessa montanha-russa de imprevistos, risos e choros, angústias e alegrias, chegadas e despedidas, felicidade e saudade, a levar uma fria vida linear, com os acontecimentos se sucedendo dentro de uma programação estabelecida e conhecida.

Os aparentes imprevistos acontecem apenas porque estávamos na direção errada, esperando o que não era nosso, com excesso de expectativas equivocadas.

Já nos basta a certeza da morte, que nos persegue no dia a dia, mas mantendo a surpresa, pois nunca sabemos onde nem quando nem como.

Por desconhecermos o resultado, lutamos continuamente. E é gratificante conseguir depois de muito tentar, sem saber se alcançaremos ou não.

Mesmo quando fracassamos, nos sentimos bem porque tentamos, acreditamos – e sonhamos.

O sofrimento vem para que possamos valorizar as alegrias.

Vencer ou fracassar são as faces de uma mesma moeda. A dor do fracasso incentiva a perseverar até conhecer o júbilo e a vibração do vencer.

Futuro é o que vier. Devemos nos preparar para tudo. E sonhar, sonhar muito, sonhar sempre.

Isso é viver.

Navios na tempestade

(Repito, novamente, neste espaço, esse texto escrito em 16.08.2014, época em que residia no Guarujá… mas acho que a mensagem ainda é válida)

 

Ma jeunesse ne fut qu’un ténébreux orage. ( Charles Baudelaire, L’Ennemi)

 

Blog do Riquetti: Chuva e saudade

 

O mar quase transparente se colore entre verdes e azuis de forma absolutamente inacreditável. O céu monocromático de intenso azul. Ambos pontuados de branco – um com suas espumas, outros com suas nuvens. Brancos etéreos, igualmente feitos de água.

Em súbito de repente o vento chega, invejoso, desmanchando as espumas, esparramando as nuvens. 

O mar, plumbeado, se apressa em recolher e guardar suas cores. As ondas se desgovernam, já não sabem para onde ir, perdem seu ritmo. O azul do céu se desvanece em cinzas. A claridade se esvai… 

Atônitas, as pessoas se assustam. Os que estão no mar correm para a praia, os que estão na praia se apressam em ir para o calçadão, e aquelas que nele caminhavam se dirigem para as casas. 

Ouço portas batendo com o vento. Ouço janelas sendo fechadas. A humanidade se recolhe. Medo do mar. Medo do vento… 

Continuo em minha varanda assistindo ao espetáculo da transmutação repentina. 

Na linha do horizonte, onde agora céu e mar se confundem, a única alteração são as luzes que se acendem nas dezenas de navios fundeados, esperando sua vez de entrar no canal. 

Não saem correndo, não pulam, não saltam. Continuam ali, imóveis, no vai-e-vem das marolas agora furiosas. 

Nenhum se apavora. Nenhum tenta fugir. Sabem que a tempestade vai passar. E, quando acabar, tudo voltará a ser como antes – mar calmo, céu limpo e azul, sol brilhando. 

Essa certeza os mantém calmos. Esperam melhores momentos que sabem que virão. 

Comparo esses navios, tão grandes em si, tão pequenos na imensidão do mar, com as pessoas que fugiram, assustadas com a tormenta. 

Tão cheios de si, tão arrogantes, se sentem tão importantes. Mas diante da menor demonstração da força da natureza, saem correndo, tentando se abrigar, se esconder… 

Devemos ser, nas horas agitadas das procelas do destino, como os navios na tempestade: não tomam decisões, não se abalam, não se agitam. 

Confiam em sua âncora, que os mantêm fundeados, e, calmamente, esperam o fim da tormenta. 

Que nossa fé seja nossa âncora e nos faça confiar o suficiente para que, como Pedro, também possamos andar sobre as águas…